Sentir, Sem Ti

13 janeiro 2013 /


Para todos aqueles que conhecem a dor que é ter quem se ama e depois precisar deixá-lo ir. 
Pra ouvir: Sailor man - Ewert and the two dragons

Então o Domingo vinha devagar no seu passo trôpego do tempo e do cansaço. Primeiro passava seus raios claros e calmos pela terra, assim como se fossem milhares de dedos de luz, já anunciando que chegara a todos aqueles que usavam isso como desculpa para começar mais um dia. Flores, árvores, pássaros e até algumas pessoas, embora tão raras, envoltos pela áurea que dele provinha. Um novo dia, uma nova chance. Incrível como encontramos esperança em qualquer lugar.

Não era querido por todos, de fato, mas pelo menos era uma das poucas certezas da vida e em meio ao caos dessa Era, era bom ter pelo menos alguma certeza. O outro dia viria, sempre vem. Mesmo que não igualmente pra todos. Era bem lento e não tão quente, mas prelúdio de um dia bom para todo mundo que gostava do sol, da preguiça, do tédio, do ócio...

Exceto, claro, pra figura que encarava as luzes que vinham as brechas da janela.

Para ele, o domingo era sempre o pior. Domingo curvou-se com cuidado por uma das brechas e observou. Ali, um homem tão parado como os móveis do quarto, embora claramente acordado devido os olhos fitadores de luzes, tentava fingir ser um dos móveis, observava corajoso a luz, encarava e fraquejava um pouco. Fechava os olhos e via diversas bolhas coloridas em meia a escuridão meio azulada.

O homem deitado sabia que logo ia começar. Assim que a luz terminasse de invadir completamente o quarto e o ar condicionado parasse por um instante de gelar, ia começar.

Então tudo pareceu mover-se no apartamento. Ate os móveis pareciam mais atentos. Primeiro o barulho da janela sendo aberta e um pulo na cama, seguido de uma chuva de beijos, no ombro, na nuca, no pescoço e na bochecha, dizendo que o domingo era bonito demais pra ficar na cama. Domingo sentiu-se lisonjeado, gostou dela. Todos gostavam. Ela tinha aqueles olhos gentis de pupilas indecifráveis e as maçãs do rosto protuberantes quando sorria.

O homem deitado na cama se contorcia devido à luz súbita em seus olhos. Logo podia ouvir o barulho da chaleira. Ela preferia chá, mas também fazia café para ele. O barulho crocante dos pães quentinhos sendo untados com margarina veio em seguida, porque ela sempre preferiu margarina a manteiga. O cheiro do café quente, do chá quente e dos pães invadiu o quarto.

- Você ainda não levantou, preguiçoso? - ele ouviu como uma voz macia e meio infantil que se perdia, como uma voz que se perde no interior de uma caverna profunda. Logo podia ouvir o barulho do chuveiro. Os banhos dela eram rápidos ("pra evitar o desperdício!", dizia) e logo a porta do banheiro se abria com aquele cheirinho suave de baunilha, o sabonete preferido dela, do cheiro de frutas que vinha do cabelo lavado. Ela saia de lá sorrindo, com os cabelos muito pretos e longos ainda despenteados e com o corpo envolto pela toalha.

Ali, parada ao lado da cama começava a penteá-los, enquanto gotas d'agua gelada pintavam por todo lado, inclusive nele, e ela desembaraçava e reclamava dos nós, diziam que iam cortar logo aquela merda que dava tanto trabalho e ele só conseguia observar o quão ela ficava linda, ali apenas de toalha, reclamando embora fosse rir assim que terminasse e esquecer completamente do que reclamava.

Depois ela viria deitar-se ao seu lado. Sua pele era gelada. Aninhava-se qual criança ali onde o peito se torna braça e ele a abraçaria meio sem jeito com o braço onde ela apoiava a cabeça e com todo o restante do corpo. Ele podia vê-la de perto dali. A pele bonita, meio morena, deixava os olhos escuros e pequenos saltaram. Ela piscava mais que o habitual pra alguém com cílios não tão fartos, mas bonitos mesmo assim.

Falava qualquer coisa então. Sobre o cabelo dele está engraçado, meio ondulado de um lado e meio liso do outro. De algo que havia acontecido antes. Sugeria algum lugar pra irem. Fazia os planos do dia inteiro, que provavelmente seriam quebrados, mas que ela precisava fazer, pra enganar o perfeccionismo que tentava controlar.

Sugeria por fim aquilo que eles realmente fariam. Levantava-se (embora não antes de lutar para livrar-se do abraço dele) e pegava alguns livros na estante. Jogava-os na cama. Voltava com o chá, café e os pães. Sentava-se com as pernas cruzadas em frente a ele, que a essa altura já havia se sentado. A fumaça do chá lhe embaçava completamente os óculos recém-colocados. Aqueles óculos que a faziam sentir uma velha, porque eram usados somente pra leitura, vista cansada. Coisa de gente velha. 

Então eles terminavam o café da manhã, colocavam as xícaras no criado mudo e escolhiam um dos livros. Então ela enfiava-se entre o livro e as pernas dele, de modo que ficavam num meio abraço para lerem o mesmo livro juntos.

O homem deitado na cama observou tudo aquilo sentado e encolhido num canto da cama. O local onde ele estava não era banhado pela luz dourada do Domingo, que também continuou observando. A sua versão dourada de luz podia tocá-la. Ele não, mas tentou mesmo assim. A mão preta e braço invadiu a luz e aos poucos também se iluminou. Ele só precisava de um toque, qualquer toque, na pele macia dela e estaria satisfeito. Mas, assim que seu braço alcançou altura suficiente dela tudo dissolveu-se no ar.

O quarto voltou a escuridão. Não havia mais cheiros, nem mesmo o do perfume dela que sempre estava no ar. A cama e os lençóis estavam gelados. Nenhum barulho se ouvia por um minuto que parecia ter parado no tempo. Um segundo eterno do mais puro vazio. O vazio pressionava até mesmo a alma do homem.

Então, o homem deitado na cama foi encolhendo e encolhendo até conseguir abraçar os próprios joelhos. Naquele momento não era mais homem, mas uma simples criança, encolhida com medo de abrir novamente os olhos. Num súbito, começou a socar os travesseiros, ainda escondendo o rosto num deles. Chorou violentamente. Soluçou e balbuciou qualquer coisa ininteligível. A dor o dilacerava.

Domingo, que observou tudo aquilo, quis passar um dos seus dedos de luz e salvar o rapaz. Tentou pelas brechas da janela, mas não conseguiu. Era preciso mais espaço para tirá-lo daquela escuridão, competência que estava além dele.

Nem mesmo esse novo dia poderia salvar alguém cuja dor vem de fora pra dentro, dilacerando até que só reste o vazio. Domingo levantou-se e foi embora. Não era ainda o dia em que o salvaria. Recordou, então, que só o Tempo entendia suas próprias piadas infames. 

14 comentários:

  1. Ilzy, eu já estava começando a sentir falta dos seus contos, mas toda a espera valeu a pena. Você conseguiu passar exatamente o que o personagem estava sentindo e a escolha do dia para mim foi significativa. Eu acho que domingo é um dia um tanto melancólico, quer dizer, para mim é. Então o conto e o dia caíram perfeitamente bem. Você iniciou o ano com um conto incrível, parabéns. Espero que esse seja o primeiro conto de muitos outros que virão durante o ano.

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    1. O Domingo também é um dia profundamente melancolico pra mim, Kah, e agora ainda mais. Confesso que esse conto é um meio pedido de "me empresta seu coração que o meu não cabe mais de tanto amor e saudades". Ainda bem que não decepcionei! Muito obrigada pelo carinho e prometo me esforçar pra conseguir conciliar a vida academica corrida com o blog e postar mais vezes. Beijão minha linda!

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  2. Me identifiquei em muitas partes com o personagem, como sempre você passando muito sentimento através das palavras.

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    1. Obrigada, Daph! Adoro isso de passar sentimentos e sensações, ainda bem que não perdi o tato. Beijão!

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  3. Uau!!! Sempre profunda e dando esse susto na gente! O conto se transforma sem avisar e fica esse espaço de tristeza.. parabéns, linda!

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    1. Haha tu é suspeita Bruninha *-* Muito obrigada, amor! Contos precisam ser supreendentes, ainda bem que esse funcionou! Beijão!

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  4. Seus contos sempre conquistam, são tão cheios, tao únicos, tão envolventes. Ler com o coração apertado, acelerando a medida que historia se desenrola. Quase da pra sentir o calor frouxo do sol de um domingo triste. Enfim, lindo como sempre.

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    1. Escrever sobre sensações é uma delicia porque acaba provocando mais sensações e o ciclo se fecha na vontade que se renova de continuar descrevendo-as. Tão bom causar boas sensações assim em alguém! Muito obrigada por me deixar fazer isso ;D

      Beijão!

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  5. Seus textos são lindos. É incrível como você consegue transmitir emoção através das palavras. Parabéns. :D

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    1. Muito obrigada, Jessica! Vou continuar sempre tentando, gosto bastante disso de transmitir emoções/sensações, mesmo quando elas não são boas... É bom sentir algo nesse mundo que anda tão vazio de tudo. Muito obrigada pelo comentário!

      Beijão!

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  6. Oie conheci seu trabalho pelo blog Depois dos quinze da Bruna Vieira .
    Amei e vim aqui seguir, parabéns pelo talento, seus textos são lindos e estão na minha lista de preferidos.

    Sempre que eu quiser relaxar e ler algo vou voltar aqui .

    http://www.vidaaposdezoito.com/

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    1. Amei ter meu conto publicado lá e mais ainda saber que mais pessoas vieram conferir mais contos aqui, que o conto publicado lá inspirou pessoas a procurarem mais do que faço. Muito obrigada por vir e espero que continue sempre por aqui!

      Beijão!

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  7. sinto falta das tuas palavras. :/

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  8. É doloroso ler sobre aquilo que machuca a gente, vc sempre falando às minhas emoções! Tava com saudades de ler teus contos, até que apareci aqui... minha escritora <3

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