Para todos aqueles que conhecem a dor que é ter quem se ama e depois
precisar deixá-lo ir.
Pra ouvir: Sailor man - Ewert and the two
dragons
Então o Domingo vinha devagar no seu passo trôpego do tempo e do cansaço.
Primeiro passava seus raios claros e calmos pela terra, assim como se fossem
milhares de dedos de luz, já anunciando que chegara a todos aqueles que usavam
isso como desculpa para começar mais um dia. Flores, árvores, pássaros e até
algumas pessoas, embora tão raras, envoltos pela áurea que dele provinha. Um
novo dia, uma nova chance. Incrível como encontramos esperança em qualquer
lugar.
Não era querido por todos, de fato, mas pelo menos era uma das poucas
certezas da vida e em meio ao caos dessa Era, era bom ter pelo menos alguma
certeza. O outro dia viria, sempre vem. Mesmo que não igualmente pra todos. Era
bem lento e não tão quente, mas prelúdio de um dia bom para todo mundo que
gostava do sol, da preguiça, do tédio, do ócio...
Exceto, claro, pra figura que encarava as luzes que vinham as brechas da
janela.
Para ele, o domingo era sempre o pior. Domingo curvou-se com cuidado por
uma das brechas e observou. Ali, um homem tão parado como os móveis do quarto,
embora claramente acordado devido os olhos fitadores de luzes, tentava fingir
ser um dos móveis, observava corajoso a luz, encarava e fraquejava um pouco.
Fechava os olhos e via diversas bolhas coloridas em meia a escuridão meio
azulada.
O homem deitado sabia que logo ia começar. Assim que a luz terminasse de
invadir completamente o quarto e o ar condicionado parasse por um instante de
gelar, ia começar.
Então tudo pareceu mover-se no apartamento. Ate os móveis pareciam mais
atentos. Primeiro o barulho da janela sendo aberta e um pulo na cama, seguido
de uma chuva de beijos, no ombro, na nuca, no pescoço e na bochecha, dizendo
que o domingo era bonito demais pra ficar na cama. Domingo sentiu-se
lisonjeado, gostou dela. Todos gostavam. Ela tinha aqueles olhos gentis de
pupilas indecifráveis e as maçãs do rosto protuberantes quando sorria.
O homem deitado na cama se contorcia devido à luz súbita em seus olhos.
Logo podia ouvir o barulho da chaleira. Ela preferia chá, mas também fazia café
para ele. O barulho crocante dos pães quentinhos sendo untados com margarina
veio em seguida, porque ela sempre preferiu margarina a manteiga. O cheiro do
café quente, do chá quente e dos pães invadiu o quarto.
- Você ainda não levantou, preguiçoso? - ele ouviu como uma voz macia e
meio infantil que se perdia, como uma voz que se perde no interior de uma
caverna profunda. Logo podia ouvir o barulho do chuveiro. Os banhos dela eram
rápidos ("pra evitar o desperdício!", dizia) e logo a porta do
banheiro se abria com aquele cheirinho suave de baunilha, o sabonete preferido
dela, do cheiro de frutas que vinha do cabelo lavado. Ela saia de lá sorrindo,
com os cabelos muito pretos e longos ainda despenteados e com o corpo envolto
pela toalha.
Ali, parada ao lado da cama começava a penteá-los, enquanto gotas d'agua
gelada pintavam por todo lado, inclusive nele, e ela desembaraçava e reclamava
dos nós, diziam que iam cortar logo aquela merda que dava tanto trabalho e ele
só conseguia observar o quão ela ficava linda, ali apenas de toalha, reclamando
embora fosse rir assim que terminasse e esquecer completamente do que
reclamava.
Depois ela viria deitar-se ao seu lado. Sua pele era gelada. Aninhava-se
qual criança ali onde o peito se torna braça e ele a abraçaria meio sem jeito
com o braço onde ela apoiava a cabeça e com todo o restante do corpo. Ele podia
vê-la de perto dali. A pele bonita, meio morena, deixava os olhos escuros e
pequenos saltaram. Ela piscava mais que o habitual pra alguém com cílios não
tão fartos, mas bonitos mesmo assim.
Falava qualquer coisa então. Sobre o cabelo dele está engraçado, meio
ondulado de um lado e meio liso do outro. De algo que havia acontecido antes.
Sugeria algum lugar pra irem. Fazia os planos do dia inteiro, que provavelmente
seriam quebrados, mas que ela precisava fazer, pra enganar o perfeccionismo que
tentava controlar.
Sugeria por fim aquilo que eles realmente fariam. Levantava-se (embora
não antes de lutar para livrar-se do abraço dele) e pegava alguns livros na
estante. Jogava-os na cama. Voltava com o chá, café e os pães. Sentava-se com
as pernas cruzadas em frente a ele, que a essa altura já havia se sentado. A
fumaça do chá lhe embaçava completamente os óculos recém-colocados. Aqueles
óculos que a faziam sentir uma velha, porque eram usados somente pra leitura,
vista cansada. Coisa de gente velha.
Então eles terminavam o café da manhã, colocavam as xícaras no criado
mudo e escolhiam um dos livros. Então ela enfiava-se entre o livro e as pernas
dele, de modo que ficavam num meio abraço para lerem o mesmo livro juntos.
O homem deitado na cama observou tudo aquilo sentado e encolhido num
canto da cama. O local onde ele estava não era banhado pela luz dourada do
Domingo, que também continuou observando. A sua versão dourada de luz podia
tocá-la. Ele não, mas tentou mesmo assim. A mão preta e braço invadiu a luz e
aos poucos também se iluminou. Ele só precisava de um toque, qualquer toque, na
pele macia dela e estaria satisfeito. Mas, assim que seu braço alcançou altura
suficiente dela tudo dissolveu-se no ar.
O quarto voltou a escuridão. Não havia mais cheiros, nem mesmo o do
perfume dela que sempre estava no ar. A cama e os lençóis estavam gelados.
Nenhum barulho se ouvia por um minuto que parecia ter parado no tempo. Um
segundo eterno do mais puro vazio. O vazio pressionava até mesmo a alma do
homem.
Então, o homem deitado na cama foi encolhendo e encolhendo até conseguir
abraçar os próprios joelhos. Naquele momento não era mais homem, mas uma
simples criança, encolhida com medo de abrir novamente os olhos. Num súbito,
começou a socar os travesseiros, ainda escondendo o rosto num deles. Chorou
violentamente. Soluçou e balbuciou qualquer coisa ininteligível. A dor o
dilacerava.
Domingo, que observou tudo aquilo, quis passar um dos seus dedos de luz
e salvar o rapaz. Tentou pelas brechas da janela, mas não conseguiu. Era
preciso mais espaço para tirá-lo daquela escuridão, competência que estava além
dele.
Nem mesmo esse novo dia poderia salvar alguém cuja dor vem de fora pra
dentro, dilacerando até que só reste o vazio. Domingo levantou-se e foi embora.
Não era ainda o dia em que o salvaria. Recordou, então, que só o Tempo entendia
suas próprias piadas infames.
Ilzy, eu já estava começando a sentir falta dos seus contos, mas toda a espera valeu a pena. Você conseguiu passar exatamente o que o personagem estava sentindo e a escolha do dia para mim foi significativa. Eu acho que domingo é um dia um tanto melancólico, quer dizer, para mim é. Então o conto e o dia caíram perfeitamente bem. Você iniciou o ano com um conto incrível, parabéns. Espero que esse seja o primeiro conto de muitos outros que virão durante o ano.
ResponderExcluirO Domingo também é um dia profundamente melancolico pra mim, Kah, e agora ainda mais. Confesso que esse conto é um meio pedido de "me empresta seu coração que o meu não cabe mais de tanto amor e saudades". Ainda bem que não decepcionei! Muito obrigada pelo carinho e prometo me esforçar pra conseguir conciliar a vida academica corrida com o blog e postar mais vezes. Beijão minha linda!
ExcluirMe identifiquei em muitas partes com o personagem, como sempre você passando muito sentimento através das palavras.
ResponderExcluirObrigada, Daph! Adoro isso de passar sentimentos e sensações, ainda bem que não perdi o tato. Beijão!
ExcluirUau!!! Sempre profunda e dando esse susto na gente! O conto se transforma sem avisar e fica esse espaço de tristeza.. parabéns, linda!
ResponderExcluirHaha tu é suspeita Bruninha *-* Muito obrigada, amor! Contos precisam ser supreendentes, ainda bem que esse funcionou! Beijão!
ExcluirSeus contos sempre conquistam, são tão cheios, tao únicos, tão envolventes. Ler com o coração apertado, acelerando a medida que historia se desenrola. Quase da pra sentir o calor frouxo do sol de um domingo triste. Enfim, lindo como sempre.
ResponderExcluirEscrever sobre sensações é uma delicia porque acaba provocando mais sensações e o ciclo se fecha na vontade que se renova de continuar descrevendo-as. Tão bom causar boas sensações assim em alguém! Muito obrigada por me deixar fazer isso ;D
ExcluirBeijão!
Seus textos são lindos. É incrível como você consegue transmitir emoção através das palavras. Parabéns. :D
ResponderExcluirMuito obrigada, Jessica! Vou continuar sempre tentando, gosto bastante disso de transmitir emoções/sensações, mesmo quando elas não são boas... É bom sentir algo nesse mundo que anda tão vazio de tudo. Muito obrigada pelo comentário!
ExcluirBeijão!
Oie conheci seu trabalho pelo blog Depois dos quinze da Bruna Vieira .
ResponderExcluirAmei e vim aqui seguir, parabéns pelo talento, seus textos são lindos e estão na minha lista de preferidos.
Sempre que eu quiser relaxar e ler algo vou voltar aqui .
http://www.vidaaposdezoito.com/
Amei ter meu conto publicado lá e mais ainda saber que mais pessoas vieram conferir mais contos aqui, que o conto publicado lá inspirou pessoas a procurarem mais do que faço. Muito obrigada por vir e espero que continue sempre por aqui!
ExcluirBeijão!
sinto falta das tuas palavras. :/
ResponderExcluirÉ doloroso ler sobre aquilo que machuca a gente, vc sempre falando às minhas emoções! Tava com saudades de ler teus contos, até que apareci aqui... minha escritora <3
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