Existe um momento da manhã, ali entre o fim da noite e
o começo da manhã onde a cidade inteira é coberta de preguiça e a luz não é tão
clara assim, onde todas as dores são mais agudas. Onde o sol não é quente o
suficiente para consolar, nem a noite fria o suficiente para fazer adormecer.
Os que acordam cedo por instinto sabem bem do que se trata.
A garota com os lençóis cobrindo apenas os joelhos era
um deles.
O acordeonista que toca pela terceira vez a mesma
música num apartamento próximo também. A senhora de saias longas e cabelos
desarrumados que descia a rua com sacolas e conversa com o vento também. A
jovem mãe do outro lado da cidade que finalmente conseguiu adormecer o bebê com
cólicas e agora contempla o começo da manhã também sabe. Nenhum deles conhece o
outro e talvez nunca chegassem a ser apresentados, mas ali - naquele momento
sem nome - compartilhavam a mesma sensação.
Ninguém desconfia, mas a solidão nunca foi tão
acompanhada.
Uma festa particular que ninguém foi convidado e está
cheia mesmo assim.
Em todo caso, os joelhos ela mantinha quietos que era
pra não acordar o homem ao lado. Pela primeira vez, não era um rapaz. Era mesmo
um homem. Daqueles com barba, cicatrizes invisíveis e olhos cansados. Era mesmo
como ela, apesar da diferença de idade, de vontades, de caminhadas pela vida.
Encarava as costas dele, cheia de sinais grandes,
pequenos, vermelhos. Encarava os braços magros que a adormeceram algumas horas
atrás, encarava os ombros subirem e descerem denunciando um sono sem sonhos.
Uma lágrima solitária rompeu-lhe a represa tão bem
construída ao redor das pálpebras. Percorreu a lateral do rosto sem qualquer
pressa e morreu solitária no travesseiro. Ela já conhecia aquele momento. Havia
experiência o suficiente para saber exatamente que era hora de deixar a lágrima
dele cair. Só uma, escondida atrás do sono dele, porque havia prometido não
chorar. As tantas outras ela engolia e chorava pela garganta porque sempre
cumpria suas promessas.
Por dentro, sua alma chorava há anos. Carregava
consigo a coroa da Rainha das Saudades de Estimação sem qualquer mérito. A
primeira da coleção veio quando o melhor amigo de infância se mudou. A segunda
quando o primeiro namorado se mudou também. Então, a lista só aumentava e
aumentava.
O pai que deixou a família por outra mulher, o melhor
amigo que sempre morou longe demais e havia se mudado para o outro lado do
oceano. A mãe e o irmão que ela mesma escolheu deixar para trás quando se
mudou. O primeiro cachorro que morreu envenenado pelo vizinho, os pássaros que
ela deixava voar por não suportar vê-los presos, o gato que apareceu um dia e
desapareceu do mesmo jeito que apareceu, os cachorros que deixou na casa da
mãe, os amigos do último ano da escola que tomaram cada um o rumo que o
vestibular lhes destinou. Os amigos - tão raros - na nova cidade que quase
nunca visitavam o apartamento que ela dividia com a solidão. E a lista se
estendia, estendia, estendia, estendia, estendia, estendia, estendia.
Colecionava saudades e bebia tristeza todas as manhãs.
Até chegar aquele momento, aquela lágrima, aquele
travesseiro estranho, aquela manhã que ela desejava nunca ter começado. Aquela
lágrima abrira a nova ferida. Só que de um modo diferente de todas as outras.
Ela nunca sentiu saudades de alguém que desejava que ela ficasse e com quem ela
também desejava ficar. Como quando você corta uma folha de papel e um corte
acaba encontrando outro e outro e outro e assim mesmo de repente o papel
inteiro é um corte só sem simetria.
Porque pela primeira vez aquele sentimento de não
estar no lugar certo havia sumido. Pela primeira vez ela sentia que pertencia a
algum lugar, que poderia desfazer as malas sempre prontas, comprar uma estante
decente pros tantos livros, arrumar um emprego e não largá-lo tão cedo,
compartilhar uma cama com alguém que não fosse uma coberta velha e que
esquentasse de verdade.
Pela primeira vez ela sentia algo além de saudades.
Ela gostava do vento de domingo à tarde, de ler
deitada na grama com o sol agradável alcançando sua nuca e o peso da cabeça
dele no colo. Gostava de esperar alguma companhia as seis da tarde e de não
precisar fazer todas as refeições sozinha. De cozinhar, de fazer carinho na
nuca enquanto ele dirigia, de vê-lo dançar assim meio bêbado enquanto também
meio bêbada ela só conseguia pensar em como ele era bonito. De rir como nem
lembrava ser capaz e de roubar sorrisos sempre que ele aparecia com o rosto
duro de preocupações. De beber na terça-feira e não se preocupar se pareceria ridícula
com a roupa que queria muito comprar.
Pela primeira sentia ter um lugar no mundo.
Um mundo que as suas saudades não eram a única coisa
que tinha.
E pela primeira vez não quis partir como faria naquela
tarde.
Mas, a mala estava arrumada. Uma vida inteira pela
frente trancada dentro de uma mala. Uma vida não cabe em 32kg, mas a dela
ficava ali, sufocada, enquanto ela - que também sufocava em silêncio -
controlava o choro de quem precisa partir.
Ele se mexeu, como quando se acorda sabendo que algo
está errado. Virou-se para o lado onde ela o observava com os olhos marejados.
Percebeu o que acontecia, percebeu o tamanho da cicatriz que ela estava
tentando curar sozinha e a abraçou. Envolvendo-a nos braços que tanto fariam
falta. Aquecendo-a do jeito mais terno possível.
E pecado mesmo seria não chorar enquanto o melhor
consolo ainda estava ali.
Pecado mesmo é precisar partir e deixar o coração com
alguém
Sem ter como garantir quando vai retornar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário