A Rainha das Saudades de Estimação

30 agosto 2015 / Tags:


Pra ouvir: Open - Regina Spektor


Existe um momento da manhã, ali entre o fim da noite e o começo da manhã onde a cidade inteira é coberta de preguiça e a luz não é tão clara assim, onde todas as dores são mais agudas. Onde o sol não é quente o suficiente para consolar, nem a noite fria o suficiente para fazer adormecer. Os que acordam cedo por instinto sabem bem do que se trata.

A garota com os lençóis cobrindo apenas os joelhos era um deles.

O acordeonista que toca pela terceira vez a mesma música num apartamento próximo também. A senhora de saias longas e cabelos desarrumados que descia a rua com sacolas e conversa com o vento também. A jovem mãe do outro lado da cidade que finalmente conseguiu adormecer o bebê com cólicas e agora contempla o começo da manhã também sabe. Nenhum deles conhece o outro e talvez nunca chegassem a ser apresentados, mas ali - naquele momento sem nome - compartilhavam a mesma sensação.

Ninguém desconfia, mas a solidão nunca foi tão acompanhada.
Uma festa particular que ninguém foi convidado e está cheia mesmo assim.


Em todo caso, os joelhos ela mantinha quietos que era pra não acordar o homem ao lado. Pela primeira vez, não era um rapaz. Era mesmo um homem. Daqueles com barba, cicatrizes invisíveis e olhos cansados. Era mesmo como ela, apesar da diferença de idade, de vontades, de caminhadas pela vida.

Encarava as costas dele, cheia de sinais grandes, pequenos, vermelhos. Encarava os braços magros que a adormeceram algumas horas atrás, encarava os ombros subirem e descerem denunciando um sono sem sonhos.

Uma lágrima solitária rompeu-lhe a represa tão bem construída ao redor das pálpebras. Percorreu a lateral do rosto sem qualquer pressa e morreu solitária no travesseiro. Ela já conhecia aquele momento. Havia experiência o suficiente para saber exatamente que era hora de deixar a lágrima dele cair. Só uma, escondida atrás do sono dele, porque havia prometido não chorar. As tantas outras ela engolia e chorava pela garganta porque sempre cumpria suas promessas.

Por dentro, sua alma chorava há anos. Carregava consigo a coroa da Rainha das Saudades de Estimação sem qualquer mérito. A primeira da coleção veio quando o melhor amigo de infância se mudou. A segunda quando o primeiro namorado se mudou também. Então, a lista só aumentava e aumentava.

O pai que deixou a família por outra mulher, o melhor amigo que sempre morou longe demais e havia se mudado para o outro lado do oceano. A mãe e o irmão que ela mesma escolheu deixar para trás quando se mudou. O primeiro cachorro que morreu envenenado pelo vizinho, os pássaros que ela deixava voar por não suportar vê-los presos, o gato que apareceu um dia e desapareceu do mesmo jeito que apareceu, os cachorros que deixou na casa da mãe, os amigos do último ano da escola que tomaram cada um o rumo que o vestibular lhes destinou. Os amigos - tão raros - na nova cidade que quase nunca visitavam o apartamento que ela dividia com a solidão. E a lista se estendia, estendia, estendia, estendia, estendia, estendia, estendia.

Colecionava saudades e bebia tristeza todas as manhãs.

Até chegar aquele momento, aquela lágrima, aquele travesseiro estranho, aquela manhã que ela desejava nunca ter começado. Aquela lágrima abrira a nova ferida. Só que de um modo diferente de todas as outras. Ela nunca sentiu saudades de alguém que desejava que ela ficasse e com quem ela também desejava ficar. Como quando você corta uma folha de papel e um corte acaba encontrando outro e outro e outro e assim mesmo de repente o papel inteiro é um corte só sem simetria.

Porque pela primeira vez aquele sentimento de não estar no lugar certo havia sumido. Pela primeira vez ela sentia que pertencia a algum lugar, que poderia desfazer as malas sempre prontas, comprar uma estante decente pros tantos livros, arrumar um emprego e não largá-lo tão cedo, compartilhar uma cama com alguém que não fosse uma coberta velha e que esquentasse de verdade.

Pela primeira vez ela sentia algo além de saudades.

Ela gostava do vento de domingo à tarde, de ler deitada na grama com o sol agradável alcançando sua nuca e o peso da cabeça dele no colo. Gostava de esperar alguma companhia as seis da tarde e de não precisar fazer todas as refeições sozinha. De cozinhar, de fazer carinho na nuca enquanto ele dirigia, de vê-lo dançar assim meio bêbado enquanto também meio bêbada ela só conseguia pensar em como ele era bonito. De rir como nem lembrava ser capaz e de roubar sorrisos sempre que ele aparecia com o rosto duro de preocupações. De beber na terça-feira e não se preocupar se pareceria ridícula com a roupa que queria muito comprar.

Pela primeira sentia ter um lugar no mundo.
Um mundo que as suas saudades não eram a única coisa que tinha.
E pela primeira vez não quis partir como faria naquela tarde.

Mas, a mala estava arrumada. Uma vida inteira pela frente trancada dentro de uma mala. Uma vida não cabe em 32kg, mas a dela ficava ali, sufocada, enquanto ela - que também sufocava em silêncio - controlava o choro de quem precisa partir.

Ele se mexeu, como quando se acorda sabendo que algo está errado. Virou-se para o lado onde ela o observava com os olhos marejados. Percebeu o que acontecia, percebeu o tamanho da cicatriz que ela estava tentando curar sozinha e a abraçou. Envolvendo-a nos braços que tanto fariam falta. Aquecendo-a do jeito mais terno possível.

E pecado mesmo seria não chorar enquanto o melhor consolo ainda estava ali.
Pecado mesmo é precisar partir e deixar o coração com alguém

Sem ter como garantir quando vai retornar. 

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