Destinados ao fracasso

16 fevereiro 2014 / Tags:


Para ouvir: Hopeless Wanderer – Mumford & Sons


Dessa vez, ele havia empenhado muito esforço naquilo. De algum modo, sabia que era sua última chance. Procurou não esquecer nenhuma das dicas que ela havia dado. Procurou levar a sério o que ela dizia, procurou ouvir mais seus problemas, procurou ser mais gentil. Sabia que ela gostava daquilo. Quem diria, até cavalheiro ele se tornou – mas, não muito, só o suficiente pra parecer natural. 

Dessa vez, ela não podia dizer que ele sequer estava tentando – como da última vez. 

E, agora, com ela aninhada no seu peito, com as unhas esmaltadas de azul cravadas de leve na camisa branca que ele usava, parecia que tudo havia valido a pena. Ela estava de olhos fechados. O cabelo escarlate parecia uma chama espalhada pelo travesseiro. O peito subia e descia devagar, a perna lisa dela – às vezes – roçava de leve nos pêlos da dele. Sabia que ela não estava dormindo, mas gostava de poder fingir que ela já confiava o suficiente para deixá-lo ali enquanto dormia. 

Alguma das bandas estranhas que ela tanto amava tocava baixinho vinda de algum ponto da sala. Um bandolim soava com veracidade. Ele quis rir. Quem diabos gosta de ouvir folk hoje em dia? Ela gostava. Ele não sabia o nome daquela faixa, mas também gostou. Nunca admitiria isso em voz alta – especialmente perto dela – mas gostou. 

Pegou uma das mechas meio alaranjadas do cabelo dela com a mão do braço onde ela recostava a cabeça agora. Alisou-a de leve entre os dedos. Seus pensamentos pegaram carona na última vez que viu o brilho dos fios dela em suas mãos. Ela chorava de joelhos nessa mesma cama, com as mãos no rosto e ódio nos olhos avermelhados que lhe dirigiu quando o expulsou dali. Foi o dia que ele lhe contou sobre a nova namorada. 

Sempre souberam que não daria certo entre eles, nem da primeira vez e muito menos depois dele tê-la trocado por outra, mas mesmo assim, aquilo parecia um pacto secreto que só eles compartilhavam. Um relacionamento cheio de ausências e tempos separados. Era formado, em essência, por algum desses momentos em você não pretende seguir em frente e aceita o que recebe. Esse ar de conformismo pairava pelos dois sempre que estava juntos. 

Aquela não foi a primeira vez que ela o expulsou da sua cama, da sua vida e essa não era também a primeira vez que ela o aceitava novamente. Houve a vez que eles brigaram tanto que ele precisou segurar os braços dela porque as unhas se cravavam no seu peito lhe faziam querer matá-la. Alguns meses depois ele a viu num bar, lhe pagou um drink e, de repente, parecia que tudo estava certo entre eles novamente. 

Se ele precisasse apontar a maior qualidade dela, seria como ela conseguia abafar sua fúria e deixar bem guardada as suas mágoas. 

Houve também a vez em que ela vomitou tudo que pensava sobre ele. É impossível confiar em você, ela disse daquela vez. Ainda podia ouvir a voz dela ecoando em sua cabeça. Ele tinha consciência que merecia todas aquelas palavras, mas isso não as tornava menos dolorosas. Por mais de uma vez, ele havia traído a confiança que ela lhe depositava. Ficaram quase um ano sem ver um ao outro depois dessa. Parecia que quanto mais tentava não magoá-la, mais vezes sairia da vida dela deixando-a segurando lágrimas. 

Mas, daquela vez, era tudo diferente.


Sabia que ela já tinha notado. Ela era ótima nisso de notar os esforços alheios. A começar pelo tempo. Seis meses juntos dessa vez, um recorde comparado as poucas semanas das outras vezes. Seis meses sem que ela quisesse expulsá-lo nenhuma vez. Houveram sim brigas, entre eles era algo comum, mas eles contornaram todas elas. 

Agora ele estava ali, deitado confortavelmente na cama que pensou que nunca mais relaxaria. Aquele era o seu refúgio, sempre foi. Era para onde tudo na sua vida parecia convergir. 

Beijou-a na testa. Foi quando ela abriu os olhos, esticou as pernas. Levantou a cabeça e cravou um olhar estranho quando encontrou os olhos meios verdes dele. Sentou-se na cama de costa para ele. Ele sabia o significado daquele olhar. Levantou-se no mesmo instante e a beijou de surpresa. No começo, os lábios dela não cederam, mas acabaram aceitando os dele. Puxou-a para o seu colo. Ela costumava segurar o cabelo da nuca dele quando o beijava assim. 

Só que dessa vez as mãos dela deslizaram para o rosto dele, segurando-o. Ela parou de lhe beijar e encostou a testa na dele. Novamente ele tentou beijá-la, mas sem sucesso dessa vez. Ele abriu os olhos e a viu de perto, de olhos fechados. 

- O que foi? – ele perguntou ríspido. Aquilo não estava certo. Obteve um “nada” desanimado como resposta. – Nunca é “nada” quando se trata de você. Ela não se mexeu. Tirou as mãos dela do seu rosto, segurou-a com carinho. Os olhos dela continuavam estranhos.  

- Você me pergunta por que eu não calo a boca. É justamente por isso. Quando eu te deixo sozinha com os seus pensamentos sempre parece que eu estou te perdendo – disse, procurando uma resposta no silêncio que ela lançava. A única emoção que notou foi na ultima palavra. – Eu... Eu estou te perdendo agora? – sua voz era medo. Ela fechou os olhos e balançou a cabeça. 

Um acesso de fúria lhe fez tirá-la do seu colo. – Que diabos eu fiz agora??? – gritou. – Não grita. Você vai acordar o prédio inteiro – ela respondeu, seca. – Foda-se os seus vizinhos! O que diabos eu fiz dessa vez? – ele levantou-se, irritado. Andou de um lado pro outro do quarto, pensando o que poderia tê-la magoado daquela vez. Revisou todos os últimos dias. Não havia nada ali. 

- Você voltou – ela disse como se aquilo esclarecesse alguma coisa. – Sim, eu voltei. Voltei e prometi que nunca mais iria embora. Mesmo que você me expulse daqui, eu não vou embora! – ele tratou logo de lhe avisar. Daquela vez, ele ia fazer dar certo. Havia prometido pra si mesmo. – Eu não estou te expulsando de nada – ela disse, na defensiva. – Então o que diabos é isso? – ele parou de frente a ela. Era pelo menos 20cm maior e ela ficava ainda menor sentada na cama, encolhida de medo da fúria dele. 

Ele se ajoelhou em frente aos joelhos dela. Controlou a fúria e falou mais baixo, segurando as mãos dela: - Me diz, no que você andou pensando? Independente do que seja, nós podemos resolver juntos. Não é o que nós viemos fazendo até agora? Resolvendo tudo juntos? – ele olhou-a nos olhos e viu que ela engolia as lágrimas. – Não chora... – disse abraçando-a. 

Um acesso de choro jorrou pelos olhos dela. Ela soluçou por um tempo na camisa dele. Procurou apertá-la forte, acariciar seu cabelo. – Calma, eu estou aqui...- sussurrou no ouvido dela. 

– E-eu sei. Mas, quem é você? – ela respondeu em meio aos soluços. Afastou-a um pouco para poder olhar nos seus olhos, perplexo. – Sou eu, Verônica, o Pedro. Seu namorado, lembra? – ele disse se perguntando se deveria levá-la a um hospital. Ela o empurrou. – Não me trate como se eu fosse louca! Você me entendeu! – disse, gritando dessa vez.

Ele balançou a cabeça demonstrando sua genuína dúvida. – Não, você não é o Pedro que eu conheci. Você é totalmente diferente dele. Você é gentil demais, carinhoso demais. O Pedro que eu conheci era rude, traiçoeiro e sempre me deixava na mão. Sempre me magoava. Digo, as vezes, quando ele estava bêbado ou algo assim, ele me tratava como você me trata. Ele dizia baixinho que me amava, como se admitir aquilo tirasse todo o orgulho dele. E, naquele momento, eu o amava também. 
- Eu te amo, Verônica, você sabe disso. A diferença é que agora não é mais difícil admitir isso – ele disse, ainda tentando entender o que ela estava dizendo.  – É... Mas, isso te torna totalmente diferente do Pedro pelo qual eu me apaixonei. O Pedro que eu amo e não confio. Você me entende? – ela disse olhando nos olhos, quase um pedido de socorro. – Em você eu confio, mas não te amo. 

De repente, ele ficou desnorteado. Ela havia entendido tudo errado. Ele estava melhorando justamente para poder ficar com ela. Tinha feito todo aquele esforço pra não perdê-la mais nenhuma vez e de repente ela dizia que não o amava mais por isso? – Você é louca – declarou. 

Ela sentou-se ao lado dele, olhou nos olhos. – Sim, eu sou louca. E era minha loucura pela qual o Pedro que conheci era apaixonado. Ele gostava de saber que em meio a toda a bagunça que eu era, eu o amava. Justamente por isso ele fugia de mim, de qualquer compromisso. E eu também fugia de qualquer compromisso com ele. Esse era nosso pacto. Nós nos amávamos justamente porque não queríamos ficar juntos – ela fez uma pausa, respirou fundo. 

– Eu não sei mais quem é você porque eu também não sou mais aquela que você se apaixonou. Em um ano eu descobri coisas novas, pessoas novas, novos gostos. O que diabos nos estamos fazendo aqui? Somos dois estranhos que um dia foram apaixonados, mas que não sabem mais quem são.

Por mais que aquilo doesse, ele sabia que fazia sentido. Ele podia saber a comida preferida dela, a cor preferida, mas não conhecia nenhum dos seus novos amigos e achava estranho descobrir que ela adorava salada agora, quando sabia que ela era sedentária e adorava fastfood. De repente, ele percebeu o que ela estava tentando desesperada provar: A Verônica que ele conhecia e amava não existia mais.

Observou a menina que estava a sua frente como que pela primeira vez. O cabelo cumprido, os olhos gentis, as roupas formais depois de um dia de trabalho. Nada de mechas coloridas em meio ao alaranjado, nada de sarcasmo, loucura e t-shirts de bandas. Ele entendeu a sensação.

Passou-se muito tempo até que um deles tivesse coragem de falar. Foi ele quem falou. – Então... Isso é o fim? – Ela só confirmou com a cabeça. – O que nós vamos fazer agora...? – disse, inseguro e com medo de saber. Ela o olhou, sorrindo de leve, gentil como era agora. – Bem, eu sugiro que você desça as escadas agora e não olhe nenhuma vez para trás. E nunca mais tente ressuscitar o que já está morto. Não vale o esforço.

E, como quem pega o que sobra, ele levantou-se da cama, caminhou até a porta. Pela primeira vez, ele também não quis voltar. Não sabia ao certo o que queria, mas sabia o que não queria: nenhum recomeço. Só começos agora em diante. 


"Então deixei aquele click na minha cabeça.
E eu lembrarei as palavras que você disse.
[Tenho agora] uma mente nublada e um coração pesado,
Mas, tenho certeza que poderei ver um novo começo."
...

NOTA DA AUTORA:  Faz quase um ano, eu sei. Primeiro, peço desculpas por isso. De todo meu coração, peço desculpas a vocês queridos leitores. Não tenho sequer uma boa explicação para dar. Eu simplesmente não conseguia mais escrever. Achava que tinha pedido o dom, a criatividade ou algo assim.  As historias vinham mas nunca conseguia finalizá-las. Hoje eu decidi que escreveria. Não sei nem se ficou bom o suficiente para ser publicado, mas quis dar esse passo. Voltei. Voltei e voltei pra ficar. Espero que vocês ainda me leiam. Senti muitas saudades de tudo isso.

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Até o próximo conto (que será em breve, prometo!). 

4 comentários:

  1. Ah Ilzy, já disse e repito: delicioso ver você escrevendo de novo. Tenho um apego tão grande pelos seus escritos, e vergonha nenhuma de te demonstrar isso. Acho que você tem mesmo uma fã. Admiro sua forma de escrever e quero muito um livro seu. E o conto, parece que você nunca deixou de escrever, gostei, como gosto de todos que você escreve. Longe de ser o melhor, isso é verdade, mas ninguém precisa escrever coisas arrebatadoras sempre. A história não fluiu fácil pra mim, mas ainda acho ele especial, pois marca a sua volta. Deixou um gostinho bom no ar de que vem coisa boa por aí. Admiro muito o seu dom, não pare mais de escrever.

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  2. Ilzy, você não sabe o quão estou feliz por não ter parado de entrar no seu blog todos os dias. Eu sentia que uma hora você apareceria com um conto tão maravilhoso como todos os outros. Eu amei o conto, não é um dos meus prediletos, mas tem aquela sua marca ali. O toque melancólico que amo tanto. Com certeza você não perdeu o dom e espero ver cada vez mais contos seus por aqui, senti muita falta deles neste último ano.

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  3. Que bom que você voltou! E não, você não perdeu o dom. Seu texto continua profundo e bonito. :)

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