Pra ouvir: Feel Good Inc – Gorillaz
“A melancholy town where we never smile”
Uma pequena gota de suor escorreu pela nuca alcançando suas costas, desenhando caminhos por dentro da blusa social. As pessoas naquela parada de ônibus realmente gostavam de bater umas nas outras. Ninguém pedia desculpas a ninguém, estavam todos correndo apressados atrás de seus ônibus lotados. O ombro dela quase foi levado por uma ou duas delas. Os saltos incomodavam, a calça social pinicava suas pernas. Ela tinha apenas trinta minutos pra almoçar no primeiro lugar que encontrasse. O calor fazia ondas no asfalto entre os carros e buzinas.
Quando finalmente encontrou um restaurante, estava completamente lotado. Parecia que todo mundo que trabalhava nos prédios comerciais próximos resolvera almoçar no mesmo lugar. O local era pequeno, cheio de mesas com quatro cadeiras cada e tudo tinha tons de metal. Não parecia confortável. As vozes se sobressaiam desconexas. Ela fez o prato mesmo assim, embora odiasse comer em lugares lotados. Não estava lá com muito bom humor, mas se precisasse dividiria a mesa com algum desconhecido. Mesmo que odiasse fazer isso.
Por sorte – até agora, a única do dia – uma das mesas, a próxima do espelho grande que cobria inteiramente uma das paredes ficou vaga assim que a moça que trabalhava com a balança e mascava o chiclete rosa de boca aberta terminou de pesar seu prato. Caminhou até a mesa como quem espreita para que ninguém a visse primeiro. Sentou-se, checou o relógio e bebeu um gole longo do suco de laranja. Alívio instantâneo. Os músculos relaxaram. Ela pegou todo o cabelo cujo alguns fios grudavam na nuca suada e prendeu-os alto, num coque mal feito.
Assim que o primeiro pedaço de carne se abrigou na boca gelada do suco, ele entrou. Devia ter entre quinze e dezesseis anos. Vestia uma blusa meio furada que claramente era maior que ele. Uma doação. Assim como o restante das vestes: sandália preta de tiras finas e um jeans desbotado. Apesar dos trajes, o rapaz tinha pompa. Entrou como quem frequenta o lugar todos os dias. Conversou com a moça do chiclete. Era eloquente. Insistiu tanto que acabou ganhando um salgado de frango.
Foi então que virou-se para as mesas. Assim como quem escolhe sua companhia mais adequada. Quando ela percebeu, o rapaz já estava com os olhos grandes fixos na cadeira ao lado dela. A mão dele, dura de calos, encostou na camisa que ela usava: - Posso sentar com você, moça? – ela levantou o olhar para o olhar dele. Ele tinha olhos famintos. – Eu preferia que não – ela respondeu, baixo e insegura. Realmente não gostava de comer acompanhada. – Moça, eu sou igual a você... – ele disse, ainda fixando seu olhar faminto no rosto dela.
De repente algo acordou dentro dela. Era uma espécie de ultraje. – Eu sei que você é igual a mim, não foi isso que eu quis dizer! – ela tratou logo de se explicar. O que diabos ele estava insinuando? Ela nunca discriminou ninguém. Muito pelo contrário, era uma dessas defensoras dos direitos das minorias, dessas que não conseguem entender como uma religião pode condenar o amor, seja ele de que tipo for, ou como o Estado pensa que prender pessoas e não lhes oferecer nenhum auxílio pode tirar-lhe do mundo do crime. Embora não costumasse ir à passeatas, ela assinava petições na internet e discutia o assunto nas aulas da universidade.
Percebeu os olhares das outras mesas voltados para ela. O rapaz pouco se importou e puxou a cadeira em frente à dela. Ele tratou logo de devorar o primeiro pedaço do seu salgado enquanto a espiava por cima dos cílios. Tinha olhos bem escuros e a pele queimada do sol das andanças por aí. Ela devia ser apenas 4 ou 5 anos mais velha que ele. – Então... Porque você está aqui sozinha? – ele tratou logo de perguntar sem se importar de estar de boca cheia. Parecia curioso. Ela olhou-o, curiosa também. Será que aquilo era uma espécie de golpe? – Gosto de comer sozinha – respondeu, seca, voltando a comer.
Porém, não conseguiu comer com a mesma fome de antes. Sua garganta fechou-se. Ela já havia pensando mil vezes sobre as pessoas que passam fome. Havia ouvido mil vezes sua mãe pedir pra ela não desperdiçar comida porque existiam pessoas que gostaria de ter aquela comida. Mas, nenhuma vez sequer, havia interagido com uma dessas pessoas. Quanto mais dividido uma mesa com elas.
- Isso é estranho... Onde estão os seus amigos? – ele continuou puxando assunto. Sua voz parecia direcionada para as outras mesas, onde todo mundo comia em bando. Agora, meio sem entender porque, ela estava com vontade de conversar com ele, embora continuasse achando aquilo muito estranho. – Não tenho muitos amigos aqui, sabe, então aprendi a gostar de comer sozinha – ela respondeu, sem sequer entender porque estava contando aquilo para ele.
Mas, era verdade. Ela mudou-se para aquela cidade uma vez pra estudar e permaneceu para trabalhar. A maioria dos seus amigos também mudou para outras cidades. Ela não fez muitos amigos nesse meio tempo e acabou acostumando-se com a solidão. Não que ela gostasse de verdade de comer sozinha, era só que é mais fácil dizer que preferia comer sozinha a admitir que não tinha ninguém para convidar.
- E porque você não tem amigos? – ele já estava na metade do salgado e ela na metade do prato. – Não sou uma pessoa muito boa – ela falou, mais pra si mesma que pra ele. Com seu jeito meio seco e sincero, ela acabou entendendo que as pessoas não gostavam de pessoas desagradáveis que sempre falavam a verdade. As pessoas sempre preferem uma valorosa mentira. Ninguém quer ter a bolha de ilusão estourada.
- Eu não acredito nisso – ele foi dizendo, como quem tem a palavra final, e se jogando contra o encosto da cadeira. Ela preferiu nem responder, embora, bem no fundo, tenha gostado de saber que alguém não achava tão ruim assim aquele jeito dela. – Você deve se sentir sozinha, mas eu tenho um segredo pra te contar – ele disse, se aproximando dela na mesa, assim como quem realmente queria partilhar um segredo. Inconscientemente, ela afastou-se pra frente, pra ouvir. Notou os olhos vermelhos dele e um cheiro estranho de bebida. – Você nunca está sozinha, sabe por quê? – e ele fez uma pausa dramática, abrindo um sorriso. – Porque você sempre tem a você mesma. Nós nunca estamos realmente sozinhos se podemos contar com a gente mesmo.
Ele afastou-se e terminou de comer o salgado. Ficou observando-a terminar de comer. Apesar da aparência sem emoções, uma borbulha de sentimentos haviam-na invadido. Ele estava realmente... tentando consolá-la? Ou tivera sido impressão sua? Aquilo parecia loucura. Porque, um garoto que aparentemente não tinha quase nada, estava consolando a ela???
Perdeu-se nos próprios pensamentos por um tempo até perceber que o relógio em cima da porta de saída marcava o seu atraso. Num salto ela levantou da mesa. – Desculpa, eu realmente preciso ir... – falou rápido, já se dirigindo ao caixa. Ele continuou sentado onde estava. – Antes de ir, moça, você pode me dar dinheiro pra eu comprar alguma coisa pra comer? – ela estranhou a pergunta. – Você acabou de comer... – respondeu. – É que eu ainda tô com fome... – e ele fez novamente aqueles olhos famintos para encará-la. Ela colocou a mão na bolsa e tirou a menor nota que tinha. Ele pegou-a, feliz, e dirigiu-se logo pra moça do caixa, para pedir outro salgado idêntico ao anterior.
Tratou de se apressar em sair. Assim que atravessou a porta pode ouvi-lo gritando lá dentro, virou-se para trás: - Até logo, minha amiga! E então a porta se fechou completamente.
Ela atravessou a rua apressada, por sorte seu ônibus apareceu logo e ela entrou. Estava lotado. Observou as pessoas ao seu redor. Todas pareciam perdidas demais nos seus próprios problemas, incomodadas demais com as outras, incapazes de ver os desconhecidos a sua frente. Incapazes de sentir qualquer empatia. Ali, em meio ao calor e aos desconhecidos, ela que nunca foi de chorar na frente de ninguém sentiu as lágrimas caindo por baixo dos óculos.
Ninguém notou.
Excelente! Além de instigante, muito bem escrito! Meus aplausos!
ResponderExcluirGK
Muito obrigada! ;D
ExcluirAdoravelmente melancólico e... Verdadeiro. Tu consegue inserir o leitor na tua história, Ilzy, e isso é maravilhoso!
ResponderExcluirAcho que um dos melhores jeitos de trazer o leitor pra dentro do conto é não dar nomes aos personagens. Essa menina pode ser você, eu ou qualquer um. Por isso acabamos nos identificando. Adoro fazer isso. A literatura não é nada sem seus leitores e leitores felizes é o jubilo do escritor. Muito obrigada, Jéssica! Espero que você sempre saia satisfeita quando ler algo por aqui. Beijão!
ExcluirMaravilha, Ilzy.
ResponderExcluirMuito obrigada, professor!
ExcluirMuito, muito, muito perfeito !!
ResponderExcluirMuito obrigada Natielly! Beijão!
ExcluirNem precisa dizer que está maravilhoso, né? Amo como você consegue introduzir o leitor na história. Parabéns!
ResponderExcluirÉ sempre uma honra ler isso, Karine! Muito obrigada pelo carinho de sempre. Beijão!
ExcluirPerfeito! *-*
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