O Fim do Mundo

23 junho 2012 /


Pra ouvir enquanto lê: Down – Jason Walker


É que tudo hoje em dia parece imenso numa redoma de vidro inquebrável feita de tédio e solidão. A multidão é formada por pessoas que querem abraços verdadeiros, mas que repudiam o toque de desconhecidos – às vezes até dos conhecidos; que preferem fingir que estão muito ocupados com algo no celular que cumprimentar o semi-conhecido que poderia ser seu melhor amigo, mas que não tem abertura nenhuma pra isso (e que também não faz questão). Tudo é orgulho, é individualismo, é inabalável tristeza, é densa negação que se precisa do outro. Todo mundo seguindo seu passo apressado como quem corre de alguma coisa que o persegue, quando na verdade correm de si mesmos.

Bem que as pessoas merecem mesmo o fim do mundo.
Mas, naquele momento, só uma pessoa sabia que o mundo ia acabar hoje.

Lá no último andar do prédio onde morava estava a mais fiel observadora da Rua Principal, após cumprir seu ritual diário. Primeiro, subia os dez lances de escada sem usar o elevador numa tentativa de ajudar o meio ambiente, sabe? Uma vez viu um documentário que era preciso preservar o meu meio ambiente gastando menos energia, especialmente com luzes, elevadores e escadas rolantes.

Hoje ela nem sabia por que estava subindo as escadas.
O mundo ia acabar mesmo.


A ideia lhe assustou bastante no dia anterior e lhe fez rezar alguns terços completos por toda a madrugada. Embora soubesse que não ia adiantar muito visto que sempre negou a fé que tinha dentro de si (porque era mais bonito dizer que não precisava de nada disso pra se afirmar no mundo) ela rezou mesmo assim. Nem sabia ao certo se estava repetindo as palavras na ordem certa, mas o fez. Talvez isso pudesse valer algo na balança do juízo final.

O medo faz qualquer um recorrer a alguma fé.
Seja num Deus, em vários deles ou em si mesmo.

Quando levantou o medo parecia ter passado. Uma espécie de alivio correu-lhe as veias, o sangue por completo, numa torrente de entendimento. Ela entendeu que era mesmo preciso começar do zero para consertar a bagunça instalada por aqui.

Tomou um banho demorado e não se preocupou com o horário do estágio, ela não ia mais precisar frequentá-lo mesmo. Pensou em escrever uma carta à sua mãe ou a irmã com que não falava há alguns meses, explicando sobre o que aconteceria ao mundo e que só ela soube disso, mas não o fez. Não ia restar nada mesmo, nem mesmo irmã, mãe ou carta. Preferiu poupar-se do trabalho.

Vestiu então a roupa mais confortável que tinha. Pensou por um momento que talvez pudesse sobreviver, já que era a única que sabia da coisa toda, mas aí notou que pior seria se estivesse sozinha. Era melhor morrer como todos os outros que estar completamente só em meio à destruição. Resolveu que iria observar o fim do seu lugar preferido e foi ate as escadas.

Terminou então de subir os lances da escada meio ofegante. Caminhou para o vitral imenso de onde todos os dias observava um pouquinho-pra-não-me-atrasar as pessoas e os carros passando lá em baixo. Ela sempre preferiu assim: observar as pessoas ao invés de precisar interagir com elas, de ser como elas. Nunca soube ao certo como se fazia isso de contato social e também nunca gostou. Mas, gostava de vê-las viver escondida ali pela lente do vitral que enfeitava o último andar do prédio onde morava, iluminando uma sala imensa e vazia usada para festa que raramente aconteciam.

Encostou o pulso e depois a mão no vitral frio. Observou primeiro os passos lá em baixo. Sorriu angustiada de ver que ninguém, além dela, sabia de nada e seguia seu passo normal. Sentiu pena de todos eles e um pouco de inveja também. Descobrir que se irá morrer no momento da morte parecia tão mais confortável que saber da sua morte com antecedência. Evitava toda a angústia de esperar consciente por isso. Mas, também, tirava a possibilidade de fazer algo a respeito.

Mas não ia haver mesmo o que se fazer.
O mundo ia acabar hoje e ninguém podia fazer nada a respeito.

Depois lançou um olhar forte para o céu. Qual um monstro que devora tudo, uma tempestade avançava por cima da cidade com seus raios e nuvens escuras demais. Era incomum, todos poderiam notar se estivessem prestando atenção. O sol já havia nascido e mesmo forte como costumava ser, enfraqueceu-se e deu lugar aquele monstro de água que se aproximava. Era o primeiro sinal do fim. A escuridão havia ganhado da luz.

Sentiu então um cheiro de cigarro invadir todo o salão. Era ele. Procurou ignorar completamente a presença que se materializava vinda sabe-se-lá-de-onde junto com a fumaça de cigarro. Mas, isso não o impedia de estar lá. Ela decidiu que já que tudo ia acabar mesmo, inclusive ele, queria guarda pelo menos uma última lembrança.

Lançou seu olhar medroso até a imagem divina ao lado. Como uma espécie de ser de luz em forma humana, ele estava qual ela observando o céu, só que sua expressão não era de medo. Era o alivio de quem esperou muito tempo por aquilo. Talvez o mesmo alívio que ela sentira quando acordou e que agora não parecia mais tão reconfortante.

Ele – como de costume – usava apenas uma calça de tecido leve, de pijamas. Estava descalço. Por entre os músculos das costas dele, ela pode observar a tatuagem de asas grandes que a cobria por completo, preta viscosa contrastando com a pele alva de luz. Elas não pareciam protetoras agora. Nada parecia protetor agora.

- Então... Agora você acredita em mim? – ele disse num tom de mágoa. Ela limitou-se a observá-lo sem responder. Ela sempre preferiu acreditar que ele era – como o seu psicólogo gostava de dizer – só mais um fruto da sua imaginação, do seu desejo de ter alguém para protegê-la e entendê-la. Mesmo que com a palavra dele se fazendo verdade em pleno seus olhos, ela preferia acreditar no lado que ainda restava da sua sanidade.

Sentiu um braço envolver sua cintura e sentiu o cheiro de cigarros ainda mais forte dali.  Costumava ser relaxante quando ele o fazia, mas agora não. Uns minutos de silêncio se seguiram e a nuvem-monstro ficava cada vez mais próxima. As pessoas procuravam abrigo nos cafés e lojinhas. As ruas estavam quase desertas.

- Bem, eu sei que você prefere me ignorar de uns tempos pra cá, mas tenho outra novidade pra você. – E com isso ele conseguiu um olhar alarmado dela em sua direção. Era de se esperar, afinal da ultima vez que ele havia dito que tinha novidades, elas anunciavam os eventos de agora. – Parece que aquele monte de orações que você fez ontem tiveram efeito. Mandaram te avisar pra você vir comigo quando for à hora. Ele tem uma vaga pra você por lá.

Os olhos dela se abriram num susto completo. Como assim uma vaga para ela?! Porque justo ela merecia uma vaga junto aos das asas?! Não, ela não merecia. Tinha total consciência disso. Repudiava a ideia de ter uma vaga para si quando existiam milhares de outras pessoas que mereciam muito mais que ela e que agora morreriam como todas as outras. – Não, eu não quero! – disse, falando com ele pela primeira vez em meses. – Não é bem uma questão de querer, sabe? Você acha que eu quis? – e ele soou tão impassível que ela entendeu que a questão não parecia ser merecer ou não, mas estar condenado a isso.

- O que eu devo fazer, então? – disse só alguns minutos depois, tomando uma coragem que não sabia de onde viera. – Você deve saltar. – ele disse com simplicidade. Os olhos dela arregalaram-se novamente. – Não se preocupe, eu vou primeiro pra você ver como é... Aliás, prepara-se, está quase na hora.

Sem conseguir decidir se havia medo, coragem, alivio ou remorso em seu sangue correndo freneticamente, ela fez o que ele mandou. Tirou a blusa e os sapatos, abriu a janela e sentiu um arrepio devido ao vento frio que entrou numa lufada. As nuvens já tomavam todo o céu naquele momento. Os raios pareciam bem próximos dali.  

- É hora. – ele disse simplesmente. Empurrou-a um pouco para o lado, ficando ele mesmo na janela aberta do vitral. Era enorme, dava pra encaixar de pé até mesmo o corpo alto dele. Ele só olhando-a mais um único instante, curvou-se de modo a beijá-la no rosto e disse que a esperava do outro lado. E então pulou.

Naquele instante ela tomou o seu lugar e inclinou-se a tempo de ver toda a tatuagem brilhando e transformando-se em lindas e gigantescas asas e o fizeram sumir por entre as nuvens escuras.

Ela sabia que agora ela sua vez. Tentou observar as suas costas que agora queimavam. Ela sabia que estavam crescendo. Ela podia sentir. E então, num susto e em meio a outro tremor completo que passara pelo seu corpo, ela saltou.

Durante a queda ela esperou, bastante nervosa, que suas asas se formassem, como as do anjo que lhe protegia. O chão estava cada vez mais próximo e o seu desespero aumentou bastante quando ela notou que nada havia acontecido em suas costas. Só então havia notado que o anjo a havia enganado. Mas, agora, era tarde demais. O chão havia chegado.

Então, o mundo acabou.

O barulho do impacto com o chão foi abafado por um trovão bem forte e pelas gotas d’agua que começaram a cair dissolvendo o sangue quente e viscoso numa poça de vermelho fraco. Jornal algum da cidade noticiou isso. Souberam, mas preferiram preservar a imagem da família. Era só mais uma suicida, os índices eram altos por ali, especialmente entre os esquizofrênicos. A multidão continuou sendo a multidão e todo parecia normal. Mas, mesmo que ninguém soubesse, o mundo acabou naquele instante.

Pra ela.
Para os raros que a conheciam.
Para a mãe e a irmã.

Mundos acabam todos os dias e quase ninguém nota isso.
Mas todos tem medo das datas que marcam para que o mundo acabe, esquecendo que o único que pode acabar com o (seu) mundo é você mesmo.

16 comentários:

  1. Sem falsidade alguma, só com uma pontinha de inveja branca: Virei tua fã neste momento!
    Quando vi o texto, pensei : ih, leitura dinâmica ativar. Mas quando comecei, uma palavra chamava a outra e no final eu já estava completamente fascinada.
    Obrigada, mil vezes obrigada. Essa leitura valeu completamente o dia.
    Quando leio contos como os teus, vejo que eu ainda não escrevo nada...
    Parabéns, você realmente sabe o que faz.

    Beijos

    www.nadadeperfeicao.com

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  2. Sem falsidade alguma, só com uma pontinha de inveja branca: Virei tua fã neste momento!
    Quando vi o texto, pensei : ih, leitura dinâmica ativar. Mas quando comecei, uma palavra chamava a outra e no final eu já estava completamente fascinada.
    Obrigada, mil vezes obrigada. Essa leitura valeu completamente o dia.
    Quando leio contos como os teus, vejo que eu ainda não escrevo nada...
    Parabéns, você realmente sabe o que faz.

    Beijos

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  3. escrito excelentemente bem, a coesão, o enredo e o desfecho perfeitos. e a ideia, principalmente: genial.
    meus sinceros parabéns.

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  4. Preciso te parabenizar pelo enredo da história. Enquanto estudante de psicologia e entendendo um pouco de esquizofrenia e doenças afins, posso afirmar que o desfecho ficou muito bom. Sua escrita também é muito agradável ^^
    Parabéns :)

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  5. Toda vez que leio qualquer texto seu me lembro o motivo de ter me apaixonado pela sua escrita. Ilzy você é maravilhosa. Da orgulho ser fã sua.

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  6. Ilzy, amiga...Parabéns, minha escritora! Gostei muito!

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  7. Magnifico, essa é unica palavra que encontrei para expressar a minha opinião sobre esse texto. Já tinha ouvido falar de seus contos, e são realmente, e até mais do que falavam e do que eu imaginava. Fazia tempo que eu não encontrava alguém que escrevia tão bem assim. Meus sinceros parabéns!

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  8. Faltam palavras pra descrever esse texto. Ficou maravilhoso, interessante, diferente, criativo. Sinceramente, parabéns!

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  9. Olha o meu, se quiser deixe algumas dicas para aperfeiçoar meu blog. Beijinhos !

    http://te-enagers.blogspot.com.br/

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  10. Lindo e surpreendente como sempre. Dá até vergonha de escrever depois que leio teus contos...

    P.s: E o seu livro, dona Ilzy? Aguardo ansiosamente.

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  11. Amei o conto. Não esperava que fosse terminar assim. Mensagem final ficou linda! Adorei. :)

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  12. Lindo mesmo! Tu escreves maravilhosamente bem e conseguisse dar o tom certo ao conto; não sendo banal e piegas, nem tão lúgubre. Gostei bastante. E a lição que ficou também é bem interessante. Pena ser tão esquecida.

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  13. Eu realmente não estava enganada, antes de ler já tinha elogios, o conto ta um absurdo de perfeito *-----*(Não consegui, não comentar rs )
    Como disse a Lidia Monteiro "Quando leio contos como os teus, vejo que eu ainda não escrevo nada... "
    Concordo plenamente, e fico até sem jeito de fazer algum comentário e o meu português está errado,mesmo se eu usasse todos os adjetivos possiveis para elogiar ainda sim eu não diria o quanto me agradou esse conto, dá vontade de imprimir e deixar na parede do quarto e ler todos os momentos e sair mostrando para todos... Quando leio algum conto seu, imagino sempre algo nos Estados Unidos, por que me lembra os livros internacionais *-*
    #sousuafã ♥

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