Longos e finos traços de luz dos primeiros raios da manhã cortavam o
chão, vindos das brechas da velha janela. Aquela iluminação fraca revelava
suavemente os contornos de um quarto tão pequeno que apenas uma volta nos
próprios calcanhares bastava para observá-lo por completo.
Era um quadrado perfeito, onde se via uma cômoda de madeira gasta encostada
na parede oposta à janela, com algumas roupas pendendo pelas gavetas
entreabertas. Havia também um tapete surrado num tom laranja-desbotado onde um
cachorro vira-lata dormia a sono solto, rangendo os dentes algumas vezes, como
se sonhasse com a perseguição de um gato ou um osso saboroso. Algumas latas de
cerveja e caixas de pizza espalhavam-se pelo chão. Um ventilador de teto rangia
preguiçoso e lançava um vento suave sobre a cama abaixo. As paredes tinham um
branco desbotado pelo tempo e algumas infiltrações.
Entre a bagunça dos lençóis, um homem magro de cerca de quarenta anos curvava-se
com as mãos no rosto, os cotovelos nos joelhos, sentado numa ponta da cama.
Parecia rezar, mas não poderia porque nunca conseguiu juntar em si crença
suficiente para uma religião.
Permaneceu naquela posição até sentir os raios fracos esquentando sua
perna. Então, como que um despertador acionado, levantou-se, foi até o banheiro
pequeno que ficava numa porta próxima a cômoda, retirou o calção fino que usava
e adentrou ao chuveiro.
No geral, ele fechava os olhos e só os abria quando a água parava de
percorrer seu corpo, que era pra não precisar encarar o espelho que ficava em
frente. Naquele dia, sem saber ao certo de onde certa curiosidade surgira, ele
os abriu. A água corrente revelou uma imagem distorcida no chuveiro.
Ele encarou aquela imagem sem a reconhecer.
Saiu da água e fui bem próximo ao espelho. Ainda não reconhecia o que
via. Puxou algumas rugas com seus dedos longos e finos. Observou como seus
olhos, outrora num tom amendoado de castanho brilhante, agora parecia pálidos,
como ele mesmo. O cabelo crespo começava a desaparecer em alguns pontos da
cabeça. Puxou todo o rosto com as mãos. Não adiantou muito, porque as rugas
continuavam ali, entre suas palmas.
De repente, quis socar o espelho, o apartamento, o tempo. Mas, como o
conformado que era, simplesmente pegou uma toalha e enxugou-se. Vestiu a camisa
branca de botões do uniforme de porteiro, onde um pequeno bordado dizia “José
Silva”. Ele, como numa piada infame sobre a própria desgraça, chamava a si
mesmo de Zé Ninguém.
Procurou os sapatos em baixo da cama. Só encontrou um. O outro estava
ao lado do cachorro que dormia no tapete. Quando o pegou, já seco, mas duro
devido à outrora de baba de cachorro, notou que o cadarço estava quase
completamente destruído.
Zé Ninguém observou aquele cadarço com atenção. Reconheceu ali uma
visão distorcida do que virá no espelho. Um algo seco, cheio de buracos e
velho. Doeu. Doeu como o diabo reconhecer-se num cadarço velho e comido. Olhou
o relógio e percebeu que caso não fosse, perderia o ônibus. Colocou os sapatos,
mas não teve tempo (ou jeito) de amarrar os cadarços.
Saiu à rua movimentada, adentrou a multidão de pernas, pastas e
carrancas, como quem entra num rio de correnteza forte, curvando-se e prendendo
a respiração, procurando sair dali o mais rápido que podia atrás de um pouco de
oxigênio limpo. E, enquanto sentia a multidão batendo em seus ombros, seus
joelhos, pisando no cadarço que ele não amarrou e o puxando pra trás enquanto tentava
ir o mais rápido que podia, a imagem do cadarço duro e comido pelo cachorro
ainda lhe torturava, fazia-se fixa em seus pensamentos, quase como se ele
pudesse tocá-la entendendo a mão à frente.
No ônibus cheio, um Zé Ninguém atordoado se encaixou ao lado de uma
gorda com sacolas e um estudante com fones de ouvido. Procurou ignorar o
aperto, o calor, o barulho como sempre fazia, mas naquele dia tudo parecia gritar
mais que o normal.
Como se dentro dele algo gritasse com força, algo que quisesse se
libertar.
Quando sua parada estava próxima, ele comprimiu-se ainda mais tentando
chegar à porta de saída do ônibus lotado. Só chegou até ela quando estava quase
fechando e no aperto, na presa de sair logo, acabou que alguma perna da
multidão segurou seu cadarço surrado e o sapato do pé direito ficou dentro do
ônibus, enquanto ele saia cambaleando e a porta se fechava.
Quando notou a ausência, Zé Ninguém correu batendo na lateral do
ônibus, gritando com sua voz rouca – que aparentava estar sempre entre um meio
pigarro – que o motorista parasse. Bateu e correu até onde pôde, mas não foi
ouvido por ninguém. O ônibus seguiu seu caminho. Zé Ninguém ainda o encarou até
que ele desaparecesse numa curva, junto com os outros carros e ônibus. A
multidão voltou a bater em seus ombros, seus joelhos, e agora também pisava em
seu pé descalço.
Então, ali com um dos pés tocando o chão sujo da praça ao lado do
prédio que trabalhou a vida inteira, com a multidão que não se importar com ele,
com o suor descendo pela nuca e a imagem do cadarço todo comido pelo cachorro
na mente, Zé Ninguém de repente quis ser alguém. Quis deixar o conformismo,
quis sorrir pra vida e dizer “estou farto de te deixar fazer o que quer de mim,
de me contentar com as migalhas que tu me ofereces”.
E embebedando-se pela primeira vez de coragem solida e visão de real vida,
Zé retirou o outro sapato, rodou-o pelo cadarço roído e jogou-o numa lata de
lixo ali próxima. O barulho fez uma parte da multidão voltou-se para ele.
Sorrindo, ele curvou-se agradecendo a atenção de sua nova platéia e deu inicio
ao novo ato da peça onde ele não era mais coadjuvante da própria vida, mas o
diretor, roteirista e ator principal. Encheu os pulmões, ergueu a coluna,
colocou o melhor sorriso que tinha e decidiu: a primeira coisa a se fazer,
então, era comprar um sapato novo.
Agora fiquei na dúvida e não sei escolher o seu melhor conto. Essa história é simplesmente linda, Ilzy. Inspira a gente a seguir a vida mesmo em meio a tantas dificuldades. =)
ResponderExcluirBjs!
Olá, tudo bom?
ResponderExcluirNão conhecia o teu blog, mas tenho que dizer que conhecer-lo foi um imenso prazer. Li uns 3 contos e gosto do teu estilo. O descritivismo torna o conto mais materializável, mais plástico, construindo imageticamente a cena.
Curti de verdade, é osso achar um blog tão bem feito quanto o seu, parabéns!
Almeida José
www.fogobrando.com
A coisa mais incrível das palavras e das "lições de moral" é esse poder de serem interessantes mesmo que já tenhamos visto em outro lugar! A ironia ao se inclinar depois de chamar a atenção por jogar fora um sapato é bela, bela e bela!
ResponderExcluirObrigada, Ilzy, por compartilhar um pedaço seu com meros mortais!
Show, Summer!!
ResponderExcluirDeliciosamente gostoso de se ler. Obrigado por compartilhar com a gente esse produto do teu ato de extravasar.
parabens :*
Me lembra Macabéa e Clarice. "Porque ter esperança é, além de tudo, uma questao de coragem", se é que posso parafrasear Clarice. Lindo o conto, mesmo. *-*
ResponderExcluirAdorei! Você sabe passar emoção através dos seus contos, nos prendendo do início ao fim. Parabéns! :)
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