Onde o Céu confundiu-se com o Mar

19 maio 2012 /


Pra ouvir (não necessariamente lendo o conto): All the rowboats – Regina Spektor

Nunca duvidei da sorte que tenho na vida. Não, ela não é sobre garotos ou loterias, alias, é tão singela que nem sei devo chamar de sorte, talvez seja apenas de uma sagaz felicidade ocasional, uma coincidência louvável ou apenas acaso. Chame do que for, eu gosto de pensar que é uma espécie de sorte. 

Bem, o fato é que moro em uma das costas onde o mar costuma banhar-se e banhar-nos com sua majestade.  Então, como apenas esses felizes como eu, posso todos os dias descer alguma das ruas íngremes da cidade – a pé mesmo, já que moro a apenas três quarteirões de uma dessas decidas que levam ao mar – e deitar-me perto daquelas ondas, sentindo o vento e os cheiros e as sensações.

Era meio de semana, cedo da manhã, e eu estava ali deitada contra a areia aproveitando o tempo que reservava para isso todos os dias, embora me custasse alguns minutos a menos de sono. Mesmo por tal preço que poucos estão dispostos a pagar, sei que era invejável essa minha opção. 

Os pássaros acabaram de fazer uma revoada cortando as ondas num voo bem próximo. Sempre penso que vão mergulhar, mas prefiro acreditar que aquele seja o ritual deles de, pela manhã, lavar os pés e desejar que aquelas sejam águas de sorte. 

Quanto a mim, mesmo sentindo o vento frio que tanto gosto trazer alguns respingos d’agua, talvez agua ainda da chuva da noite passada, e adorar o mar como a um Deus, esqueci-o por completo e deitei pra observar o céu.

Daquele ponto do começo da manhã fria, o céu confundia-se com o mar que também refletia as nuvens branquinhas. Era a fusão de azul com azul mais intensa e bonita de todas. Além, claro, do fato de ser azul – minha cor preferida. 

E eu fiquei ali respirando aquela beleza, deitada contra a areia fofa e gelada que agora grudava no meu cabelo, no meu casaco, nos meus sonhos, lembro-me que por mais admirável e incrível que fosse o céu e suas criaturas, eu jamais seriam um deles, eu jamais poderia sair dela. Porque, veja bem, as pessoas podem voar com que aviões, mas eu queria ser um pássaro, ter asas de verdade, entende? Poder saber que o meu voar era obra unicamente do meu esforço. 

Em meio ao meu devaneio entre areia e nuvens, senti que alguns passos me diziam olá. Estavam cada vez mais perto e a julgar pela hora, só poderia se dirigir para mim que era o único ser humano que tem coragem de aparecer por ali àquela hora, além dos que dependem do mar para viver, claro. 

Olhando ainda deitada e vendo-o de cabeça pra baixo, percebi que se tratava de um rapaz só alguns anos mais velho que eu, talvez dois ou três, também vestido num casaco e com um daqueles rostos comuns, bem masculinos em seus traços, mas que conseguem ser bonitos mesmo assim. O cabelo dele não dizia olá a uma tesoura há bastante tempo, pensei, quando o vi completamente levado pelo vento, fazendo o penteado meio rockabilly dele ser destruído. Os olhos estavam fixos em mim, observando-o daquele jeito estranho e curioso, e ele coçava a barba como quem ainda não tinha decidido se faria ou não o que faria, embora já estivesse no meio do processo. Então, quando chegou bem perto ele se decidiu.

- Até que enfim te encontrei. – disse assim como quem conversa com uma amiga que estava procurando há muito tempo e finalmente a encontra em seu esconderijo. – Desculpe, nós nos conhecemos? – eu respondi meio vacilando, levantando-me envergonhada de limpar os grãos de areia que grudavam em todo o meu corpo. – Você não me conhece, mas eu lhe conheço bem. – ele disse e sem convite algum, exceto pela curiosidade que brilhava mais ainda nos meus olhos, sentou-se ao meu lado e sorriu. – Mesmo? De onde? – observei um pequeno rubor brotar pelas faces pálidas do rosto dele onde a barba ainda não cobria. – Dos meus sonhos.



Não pude evitar um riso estranho. Um daqueles que damos quando simplesmente não sabemos como reagir a alguém. O rubor dele permaneceu me encarando enquanto a coluna dele deitou-se sobre a areia ao meu lado e os olhos dele pousaram sobre o céu que era apenas meu há pouco. 

- Pode rir, eu também estranhei quando lhe vi nos últimos dias que eu ficava ali naquele boteco, apenas olhando você olhando o mar. Mas, de fato e agora que observo de perto, você é mesmo a menina com quem venho sonhando. Tens o mesmo cabelo curto, os mesmos olhos castanhos-chocolate com esse olhar surpreso pela minha audácia de lhe dizer tamanho absurdo, mas de fato é mesmo a tal menina cujo nome não sei, mas que me acompanha por um bom tempo. – E o falar dele foi tão categórico que me deixou completamente de guarda baixa. 

Que tipo de desconhecido chega falando que conhece alguém dos seus sonhos? Um louco? Esquizofrênico, talvez. Ou autista. Ou qualquer uma dessas doenças que dão coragem as pessoas pra ser e fazer o que querem.  

Bem, o fato é que ele me assustou. Porque eu estava aqui tranquilamente deitada observando as coisas do mar e do céu e pensando sobre como eu gostaria de ter asas pra fugir de tudo e então um cara que parece habitar o céu há muito tempo chega falando de sonhos? Confesso que pensei em dar uma desculpa qualquer, dizer que não sei do que ele estava falando e ir embora, mas a minha curiosidade – e, porque não dizer, o meu fascínio de saber que alguém sonhava comigo – me deixaram ali plantada na areia como a árvore que eu nunca quis ser.

– E o que acontece nesses seus sonhos? – me vi perguntando, quase sem mesmo notar, só pra continuar sabendo mais sobre tudo aquilo que agora detinha toda minha atenção. – Bem... Eles são quase a repetição do mesmo. Era sempre como se eu precisasse desesperadamente te encontrar, te alcançar, mas você permanecia correndo e correndo de mim. Então, com a repetição disso tudo, eu acabei gostando da ideia de te alcançar, de ti ver de perto, de cuidar de ti, mesmo que você fugisse e fugisse de mim. Como você quer fazer agora, eu sei. 

À medida que ele ia falando, eu ia ficando cada vez mais sem ar, sem voz, sem saber como agir. Como alguém se apaixona por outrem apenas em sonhos? E como ele podia saber que era eu, nos sonhos, se ele nunca alcançou para saber como eu realmente aparento ser? E o encanto dele não havia de passar após me alcançar? 

Um milhão de dúvidas e nenhuma delas podia ser respondida com ele apenas cravando os olhos nos meus, curioso para saber quem eu sou, talvez mais até do que eu queria saber sobre ele. Então, a covardia me atingiu. Finalmente mostrei minha face natural. Levantei-me de repente dizendo: – Desculpe, mas tudo isso é absurdo demais pra mim. Preciso ir...

O rosto dele tornou-se grave e num instante ele estava de pé como eu, segurando meu pulso. – Por favor, eu já estou cansado de ti ver fugindo de mim. Eu estou apaixonado por você... – os olhos deles tomaram um ar de pedido, quase implorando para que eu não partisse. – Como você pode estar apaixonado por mim?! Você sequer me conhece! Eu posso sequer ser a garota dos seus sonhos... – eu disse deslizando o meu pulso dos dedos dele, sem sucesso porque ele não parecia que iria deixar. – É claro que você é ela! Eu sabia que quando finalmente a visse, saberia instantaneamente quem era. E me apaixonaria por ela, porque você deveria saber, paixão é assim instantânea. Eu não faço ideia do seu nome, nem de quem você seja, o que eu sei é que estou apaixonado e só queria uma chance de ti fazer sentir como eu...

Confesso que meu coração começou a amolecer perante as palavras tão sinceras que ele dizia. E eu comecei a nota-lo de um jeito estranho, diferente. Se ele tivesse razão e todo esse nervosismo inicial fosse indicio de inicio de paixão? Eu não podia negar que gostava do jeito corajoso e sonhador dele, e do cabelo sem corte e do quão quente e protetora a mão dele no meu pulso podia ser. Mas eu estava com tanto medo! Eu não entendia aquilo e não sabia como reagir!

Ele soltou meu pulso quando viu a confusão transparecer pelo meu olhar. Sorriu terno e calmo, entendo que estava sendo invasivo demais, então simplesmente estendeu a mão em minha direção dizendo: - Quantas vezes na vida você acha que alguém vai estender a mão assim, como eu agora lhe estendo, e dizer: “me deixa te fazer feliz porque isso me faz feliz”? Quando você contar essa história pra alguém, vai preferir dizer que arriscou e fez dela uma boa história, ou que desistiu antes mesmo de tentar?

Aquilo me atingiu como um soco. Quando vi a covarde em mim estava perdida em algum lugar que eu não sabia mais como encontrar. A vontade de ir embora se esvaiu e mesmo sem saber ao certo porque, coloquei minha mão dentro da mão grande dele. Parecia seguro. Parecia bom. Parecia que valia a pena arriscar pelo menos uma vez parar de querer voar daqui e finalmente entender que o chão talvez pudesse ser um bom lugar, com boas companhias, onde eu pudesse construir algo que poderia ser minhas asas, algo que fosse meu, pelo meu esforço. Talvez minhas asas pudessem ser feitas do amor que – quem sabe dizer além do acaso? – eu poderia construir a partir de agora. Ele parecia disposto e a disposição dele me deu vontade de tentar também.

Então ele sorriu tranquilo, sentou-se novamente e me fez sentar ao seu lado, bem perto. E sorrindo como quem finalmente parecia alcançar algo que queria muito, ele disse tranquilamente: - E então... Qual seu nome?


Quem nunca dá chance ao desconhecido, não pode reclamar depois.
Até mesmo o céu e o mar tão soberanos, podem se confundir um no outro. 
Porque não se deixar misturar a outrem, então? 





6 comentários:

  1. Acho que a unica coisa que posso dizer é que seus textos fazem minha vida valer a pena.Obrigada

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  2. Ai meu Deus, Ilzy, que perfeito!!!! Sem palavras pra expressar meu amor por esse conto... A M E I!

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  3. Que história linda, Ilzy. De todos os contos que já li, este foi o único texto que li até o momento e imaginei cada situação, cada palavra sendo dita pelas personagens.

    A história é linda e a sua forma de contá-la também.

    Bjs!

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  4. Que lindo! Cada dia que passa suas histórias ficam mais e mais perfeitas!!! *________*

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  5. Que lindo, Ilzy!!! E que vontade que deu de morar no litoral! xDDD

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  6. Lindo conto! Sem palavras para expressar o que senti ao lê-lo! *-----*

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