Todo o album do Bensé
"Coloque um vestido no domingo", ele disse no seu costumeiro
tom autoritário, no meio de uma daquelas ligações tarde da noite em que
pretendemos apenas dizer "durma bem", mas acabamos conversando mil e
uma das nossas teorias loucas.
Sempre assim: Dava-me uma ordem, respirava fundo e ria rouco de sono,
mas sem qualquer vontade de desligar (embora o fizesse minutos depois), pra eu
então rir boba de vontade de entender porque simplesmente não conseguia me
desligar dele, embora odiasse receber ordens, odiasse o riso rouco dele,
odiasse não conseguir abertura nenhuma para decifrá-lo.
Mas, me desprendia daquele desejo por saber o que aquilo significava:
era um daquele dias em que ele aparece bem cedo na minha porta, apenas com
barras de chocolate, cervejas, sua inseparável câmera e a roupa do corpo, me
forçando (sem mover um dedo) a entrar no carro, só por saber que nunca consigo
resistir ao seu melhor sorriso; Só por saber o quão eu amava estar sozinha com
ele.
Ele me conhecia perfeitamente. Tinha-me (mesmo escorregadia) entre os
seus dedos e fazia o que bem entendia, especialmente por saber quão afagava meu
ego saber que ele, o esquisitão metido à anti-social e fotografo alternativo,
me elegera sua musa. Justo eu, a menina quieta e sabe-tudo de biblioteca, que
mal entendia nada de maquiagem e moda, nem do que ele sentia ou era, mas que
era a única capaz de bater de frente com o autoritarismo dele, por vezes até
derrubando-o, pra provar que era melhor do que ele pensava de mim.
Lançou em mim, então, todo o seu platonismo artístico e me levava pra os
lugares mais peculiares nos arredores da cidade, longe dos prédios cinzas, das
fumaças e das carrancas das pessoas. Sempre num campo verde, numa árvore
centenária, uma fazenda, uma trilha. Fazia-me Marília e forçava-me a querê-lo
meu Dirceu, e eu me fazia de bucólica pra aproveitar aquele carpe diem torto,
mesmo sabendo que acabaria lendo seus poemas tristes vindos entre as grades da
prisão que ele fazia ao redor de si, que nunca me deixava aproximar o quão eu
queria.
Só que aquele domingo não soava quais os outros.
Daquela vez, ao invés de simplesmente estacionar próximo à calçada e
esperar, ele desceu do carro e encostou-se do lado do passageiro
despreocupadamente. Esperou-me sair sorrindo torto. Tinha aquele ar de quem me
tinha na mão quando me observou com o vestido que uma vez ele havia elogiado.
Tentei decifrá-lo enquanto caminhava devagar em direção à ele, tentei montar
alguma defesa, mas tudo que via era o riso dele.
Ele vestia um jeans escuro, camisa listrada e tênis surrados. Colocou o
cabelo cor de cobre num topete que me agradava e, o olho dele - cujo nunca decifrei
se era verde ou avelã - brilhava maldoso refletindo a grama em frente à meu
prédio.
Pegou minha mão quando eu estava próxima o suficiente e a beijou, me
fitando por cima dos cílios. Estranhei completamente o contato (no geral, ele
só me tocava quando queria me ensinar que pose eu deveria fazer para
determinada foto). De repente, pensei em inventar alguma dor, alguma desculpa,
quis fugir dele e daquilo tudo que me prendia por pura ilusão que criei dos
meus livros, mas não pude mover um dedo.
Sentei-me no carro e o observei dar a volta até o seu lugar. Pousei meu
olhar numa cesta que descansava no banco traseiro. Era uma daquelas cestas de
piquenique que eu apenas havia visto em filmes. Uma toalha quadriculada vermelho
e branco pendia com uma ponta pra fora. Achei interessante a idéia dele para
aquela sessão de fotos e relaxei um pouco. Era bom saber de algo, já que ele
nunca falava nada.
Vi através do retrovisor que ele me observava pelo vidro traseiro. Mesmo
com os vidros foscos, seu olhar brilhava. Ele pegou a câmera do suporte que
levava no pescoço e registrou meu olhar curioso através do retrovisor. Agradeci
por ter dormido bem aquela noite e não estar com as olheiras tão evidentes.
Ele então terminou a volta, entrou e não disse nada, apenas sorriu para
mim. Tentei retribuir. O observei a metade do tempo, enquanto ele dirigia e
respirava tranquilo. As vezes, ele me espiava pelo canto do olho e eu desviava.
Não tinha certeza sobre se estava mesmo pronta pra encará-lo completamente
tranquilo, enquanto em mim brotava cada vez mais uma vontade de fugir dele.
Era como se eu tivesse entendido que aquele não era um dia comum, e
mesmo assim quisesse sufocar a idéia.
A viagem durou menos do que eu esperava. Chegamos cedo a um simples
parque que ficava na zona sul da cidade. Lá, a grama crescia verde, os postes e
bancos eram estilo medieval, de metal forjado e madeira polida e algumas
árvores cresceram tanto que não seria exagero lhe atribuir algumas centenas de
anos. Naquele dia, algumas pessoas reuniam-se ali, para aproveitar o sol.
Ele saiu e quando abri a porta, já estava me esperando, com o braço
estendido para mim. Segurava a cesta na outra mão. Coloquei meu braço no dele e
caminhamos até uma das sombras daquelas árvores gigantescas, bem no meio do
parque.
Naquela altura meu medo já estava um tanto suavizado. Tratava-se só de
uma sessão de fotos de um piquenique, não precisava pânico. Ajudei-o a preparar
a toalha, os pratos, os copos e a comida. Notei que ele havia trazido uns livros
de contos de fadas. E depois de tudo perfeitamente pronto, agradeci por
finalmente ter começado a me interessar por todas aquelas coisas: cabelo,
maquiagem e moda.
Agora eu era digna de ser a sua musa, porque pequenos cachos delicados
caiam no meio das minhas costas onde geralmente caia apenas um rabo-de-cavalo
liso e sem graça. Meu vestido era curto, branco e florido de lilás, combinado
com um cinto trançado de couro e saltos suaves numa gladeadora. Batom suave,
blush suave, olho marcados de delineador. Meu ego ria de pensar como aquelas
fotos ficariam boas.
Então ele sentou-se ao meu lado, finalmente. Riu e me serviu um copo de
suco de goiaba. Serviu a si mesmo também. Pegou um pão e colocou geléia sobre
ele com vontade. Eu coloquei Nutella no meu (ele havia trazido, pois sabia que
eu adorava). Notei que ele havia tirado a câmera do pescoço e colocado sobre a
toalha. Ele não havia trazido o tripé.
Meu sexto sentido aguçou-se novamente. Ele nunca tirava a câmera de
perto, que era pra não perder nenhuma possível pose perfeita. Tudo estava em
ordem e bonito ali pra um cenário de piquenique. Eu até estava me sentando com
a coluna reta e tudo, como ele costumava mandar. Mas, agora, ele simplesmente
deliciava-se com sua torrada, geléia e suco e olhava pra mim sorrindo
levemente.
Foi então que eu notei que aquilo não era uma sessão de fotos,
Mas um piquenique real entre nós dois.
Fixei meu olhar nele completamente sem entender. Porque ele estava
fazendo aquilo?! E porque ele parecia tão tranquilo?! Ele captou minha dúvida
minutos depois e cravou o olhar - que agora perto da grama refletia um verde
clarinho - e perguntou se eu estava bem. - Não... Digo, não estou entendendo.
Não vamos fazer fotos? - disse com a voz nervosa, rápida e cortada.
Ele inclinou a cabeça um pouco para o lado com os olhos cravados em mim,
como quem tentava me decifrar. Um sorriso leve surgiu num canto dos seus
lábios. - Então você está toda arrumada assim porque pensava que iríamos fazer
uma sessão...? - disse no tom irônico que eu odiava. Ou pelo menos foi como
entendi. - E não é disso que se trata? - eu disse, gesticulando para toda
aquela arrumação e usando meu melhor tom retórico para rebatê-lo.
Ele riu suavemente, arrumando a cabeça, olhando para as próprias mãos e
balançando a cabeça. - Não, Elisa, não é disso que se trata. - pela primeira
vez ele havia me chamado pelo nome, ao invés de Marília. Achei tudo
profundamente estranho e fiz questão de colocar isso no meu semblante. - É tão
estranho assim pra você que eu lhe convide para tomar café comigo? - disse ele,
como se realmente fosse natural, como se fosse quase normal entre nós.
Decididamente não era.
Ele simplesmente me ignorava durante toda a semana. Só me procurava
quando precisava de - favor ler com muita irônica o termo seguinte - "sua
musa Marília" para algumas fotos num lugar distante, onde eu ficava horas
fazendo carão pra câmera dele e seguindo tudo que ele me mandava fazer, por
vezes ralando meu joelho e mãos entre pedras, troncos e capim que ele tanto
amava me colocar no meio, tudo em nome de uma boa foto. Ele não me pagava nada
por isso, eu só gostava do trabalho dele, então colaborava. Não éramos sequer
amigos, eu não fazia ideia dos gostos dele, dos pensamentos dele, de quase nada
sobre ele.
Captando aquela minha confusão, ele desmontou o sorriso e a naturalidade
do rosto. Saiu até onde havia estacionado o carro e voltou com o tripé. Pegou a
câmera, encaixou-a ali. Apontou o tripé uma pouco para baixo, de modo que a
câmera conseguisse pegar todo o cenário. Eu permaneci estática em meu lugar com
uma sensação que havia estragado tudo.
- Já que você quer tanto essa sessão de fotos, vamos fazê-la. - ele
disse autoritário, e também com certo tom estranho de diversão que não entendi.
- Só que dessa vez eu serei seu par. - E então ele programou cuidadosamente a
câmera para algumas poses. Primeiro ele pediu que eu e ele fingíssemos que
conversamos alegremente. Depois que ele me observava lendo um dos livros de
contos.
E tudo correu normalmente, até ele programar a câmera para três poses e
não me dizer o que eu deveria fazer. Subitamente, puxou-me para o seu colo.
Meus joelhos estavam entre a cintura dele. Ele levantou minha cabeça com o dedo
indicador e me olhou fixamente. Primeiro click. Encarei-o sem entender aquele
contato tão súbito e ele encostou o nariz no meu, sorrindo levemente, imitei
seu sorriso. Segundo click. E ali, respirando o ar que saia do meu nariz, tão
perto como jamais imaginei que ele um dia ficaria de mim, ele cravou as mãos na
cintura, cravei meus dedos nos cabelos da nuca dele e ele me beijou. Terceiro
click.
Só que depois da imagem feita, ele não parou de me beijar.
Continuou beijando molhado e fundo, num desejo reprimido que se esvaia
pela minha respiração ofegante, pela respiração cortada dele. E eu notei como
desejei aquilo sem mesmo notar! (Ou simplesmente por tanto reprimir). Notei uma
felicidade estranha e deliciosa instalando-se por todo meu corpo, relaxando-me,
enquanto ele puxava minha cintura cada vez mais para ele, com força e vontade.
Depois de um tempo naquele beijo, ele me deu um selinho e riu. Riu
lindamente tão perto do meu rosto que chegava a ser irreal, utópico. - Eu não
quero mais que você seja minha musa, Elisa. Quero apenas que seja minha, como
serei teu. Seja minha, ok? - Disse assim, seco e afirmando. Não era um pedido,
era mais uma das suas ordens.
Ponderei dizer não e finalmente me livrar, mas sabia que não conseguiria
quando ele crava aquele olho em mim com tanto desejo. Não quando agora todo o
meu desejo por ele corria solto por todas as minhas veias, fazendo minha cabeça
latejar.
Então, me deixe prender dentro das grades que ele cuidadosamente havia
montado pra aprisionar minha alma. Fiz-me refém, e no notei que faria aquilo
que ele quisesse que eu fosse, simplesmente pra que eu fosse dele.
E só dele.
...
NOTA DA AUTORA; Nossa quanto tempo, meus lindos! Peço mil perdões por um mês todo sem contos, é que realmente estive sem qualquer inspiração. Resolvi trazer um conto leve nessa volta. Espero que goste, pois ultimamente tenho me sentindo assim: livre e leve.
Liindo, ouvir Bensé causa essa leveza nas pessoas mesmo, Au grand jamais é a trilha sonora perfeita pra ele. Amei o texto querida!
ResponderExcluirQuando leio seus contos, consigo ver a cena, mais que isso, consigo sentir. Vale a pena esperar por eles, pois não importa se leves ou pesados, são sempre profundos e lindos, cada um a sua maneira.
ResponderExcluirCara, muito tempo que eu não vinha aqui, Ilzy, mas não sei por que, cliquei no link e vim ler. Tô apaixonada! Você escreve de uma maneira tão linda, parece que as palavras fluem, as cenas são projetadas em minha mente e eu vejo como um filme. Amei ♥-♥
ResponderExcluirSenti falta dos contos, mas valeu a pena esperar. Texto incrível, tão leve, tão bom de ler!
ResponderExcluirTermino seus textos com uma respiração pesada, de tanta emoção que eu sinto.
ResponderExcluirMuito lindo, Ilzy!
ResponderExcluirConfesso que fiquei triste a cada dia que passou sem um texto seu aqui.
Mas entendo perfeitamente o que é ficar sem inspiração.
Não é algo que se possa controlar.
Anyway, eu adorei esse conto. E gostaria de me sentir assim também... livre e leve.
Muuiitos beijos :*
parabens...de verdade vc é otimaa
ResponderExcluirAaaaiiinnn, que nojo de você! Lindíssimo esse conto! Que doçura, ele parece "laranja", como se o sol estivesse entre eles... aaaaaaiiin, nojenta! hahahahaa...Adoro seus contos!
ResponderExcluirLiinda, sou apaixonada por suas palavras, tenho um sonho de que seu blog inteiro fosse um livro, pra eu carregar ele pra onde fosse!
ResponderExcluirNossa encontrei seu blog e lindissimo... seus contos faz agente viajar! :)
ResponderExcluirTo te seguindo depois dá uma olhadinha no meu! :)
http://flavinhangel.blogspot.com.br/
Que conto fofinho! Amei! *-*
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