Não consigo pensar em nenhuma melodia que combine com estas palavras,
desculpem
Posto que selar a porta
significava ter cumprido mais uma dessas suas missões sujas, ela ainda podia
sentir os passos que o último cliente deixara entrecortando a parte de fora e a
de dentro do pequeno apartamento. Uma janela refletia o cinza do prédio à
frente do seu, transformando todo o local numa projeção do seu humor típico. As
coisas ali dentro também seguiam o padrão do humor: tabaco e branco, junto com
as paredes meio amareladas de tempo. A decoração e os móveis eram modestos, mas
bem limpos.
Observou atenta ao relógio
na parede posterior, encostando as costas nuas à madeira, julgou conveniente o
tempo que tinha. Executaria um plano. Caminhou arrastada até a cozinha, os pés
descalços em contato com o chão de madeira fria. Encontrou sobre a mesa os
costumeiros (ou seria companheiros?) cigarros. Tirou habilidosamente um deles
do maço, colocou na boca. Procurou os fósforos. Encontrou. Acendeu. Tragou.
Gostava de segurar a
primeira tragada para que ela fosse bem fundo dentro de si e saísse quente como
entrou. Soltou a fumaça dentro da geladeira enquanto pegava leite, ovos e
manteiga, segurando o cigarro com a boca, novamente. Fechou a porta com o
quadril. Do armário que ficava ao lado, tirou uma caneca, farinha e açúcar.
Achou um achocolatado e um pacote de M&Ms aberto, levou também.
Colocou tudo sobre a
mesa, ao lado do maço dos cigarros. Com uma habilidade que era mais cuidado que
talento, quebrou o pequeno ovo dentro da caneca, bateu com o garfo. Lembrou dos
gemidos, do ranger da cama, dos ruídos que não eram dela, mas estavam sobre
ela. Pra aliviar os pensamentos que ela costumava sufocar, procurou murmurava
alguma coisa suave que ouvira uma vez, não lembrava quando. Acrescentou o
leite, a manteiga, o achocolatado. Quando foi a vez do açúcar, este caiu um
pouco pela mesa e ela recolheu com o dedo, lembrando quem a havia lhe
apresentando aquela musica.
Era aquele cliente mais
culto e gentil viera uma vez pra nunca mais voltar. Ele dizia que Carlos Gardel
era sexy. Ela concordou enquanto ria e mensurava consigo o quão incomum era rir
com um cliente, e ele lhe segurava pela cintura tentando ensinar como se
dançava o tango que ele tanto amava e que ela não levava o menor jeito.
Parou de rir quando
lembrou que, como qualquer outro, ele estava lá única e exclusivamente para
usá-la, pagar e ir embora, como fez. Qual um doce desejado que se compra, paga,
abre, come e joga a embalagem fora e depois não resta nada.
Só que, como eles
costumavam não se atentar, depois de comer aquele doce amargo de suor e prazer,
restava sim algo. Os restos de uma mulher de quase trinta anos que estava a
tanto tempo naquela vida que já nem recordava das primeiras lembranças. Devia
ter procurado esquecer, como fazia agora com todas as outras. Os restos de um
rosto que não mais sorria, que perdera o brilho, a vontade, o desejo. Agora os
restos eram migalhas que outros porcos imundos, como todos eles o eram, vinham,
pagavam e comiam.
Ela acreditava fielmente (era a coisa mais próxima de uma religião que conseguiu juntar em si) que um dia
não restariam mais migalhas de si para serem vendidas e esperava paciente e
entediada pelo definhar de si mesma, sorrindo triste lembrando de ouvir em
algum lugar que o herói da história não precisa ser salvo.
Misturou os outros ingredientes,
programou o microondas para três minutos. Acendeu outro cigarro. Sentou-se com
uma das pernas sobre a cadeira tragando outro cigarro por inteiro. Ao final do
tempo, tirou o pequeno e torto bolo do fogo, acendeu outro cigarro, decorou com
achocolatado e os M&Ms que havia achado e usou o
próprio cigarro como velinhas sobre o bolo.
Parabéns pra mim, pensou,
enquanto e na verdade só conseguia imaginar que agora faltava menos um para o
fim. Soprou a fumaça cinza como todo o resto sobre o bolo enquanto a campainha
tocava. Levantou-se, esticou as pernas e foi atender a porta, coletando pelo
chão o que pensou ser algum resto de dignidade, mas eram apenas bitucas de
cigarro ainda acessa e fumaçando.
Mais uma vez cozinhando as melhores histórias nas menores vasilhas. Hoje é dia de epifanias?
ResponderExcluirMais uma vez cozinhando as melhores histórias nas menores vasilhas. Dia de epifanias. Será que teremos mais um daqueles leitores venenosos pra gerar mais polêmica? A janela de comentários aumenta tão rápido nessas ocasiões.
ResponderExcluirUAU... Essa é a minha palavra para o texto. Estou sem palavras Ilzy. Você como sempre arrasando nas histórias. Muito bem contada, amei!
ResponderExcluirÓtimo conto! Intenso que só...
ResponderExcluir=)
Vou te seguir... Me faz uma visita qualquer dia desses?
http://maira-souza.blogspot.com/
http://marina-colasanti.blogspot.com/
BjO
genial. julgo até dizer: um dos teus melhores. escrever de sujeira e sordidez procurando curar o doído lá de dentro. é como se fosse anestesia: falar de mulher da vida que não presta pra ver se a gente começa a sentir qualquer coisa assim de feio e repugnante. só pra que o sofrido lá de dentro seja esquecido de ser sentido de alguma forma.
ResponderExcluirUaaaaaau!!!! Estou beeesta! Muuuuuuuuuuuuuuito bom, Ilzy!
ResponderExcluirEu a-do-ro seus contos sujos!
Quantos notaram a referência à música do penúltimo conto?
ResponderExcluirTriste. Sujo. Lindo. Como sempre
ResponderExcluirImpactante!
ResponderExcluirGostei da sensibilidade como a personagem e o momento são tratados. Gostei do papel do cigarro na história, que me fez achar que ela soltava um pouco das memórias que não queria guardar a cada baforada.
Normalmente eu gosto de personagem mais "corajosos" que lutam e desafiam a realidade que não querem enfrentar, mas há muito tempo não me comovia tanto com a história de alguém que parece ter perdido as forças e encontra-se quase indefesa para resistir ao próprio destino.
Uma das sujeiras literárias mais sutis e bem-feitas que eu já li.
ResponderExcluirQue conto melancólico... mas mesmo assim muito bom! :)
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