Melhor deixá-la partir

27 abril 2012 /


Benediction – Thurston Moore

Apenas um par de os olhos castanhos refletia o brilho do sol que agora entreva pelo vidro da janela semiaberta, onde o vento frio do começo da manhã se espremia e invadia o quarto, acordando as cortinas, os lençóis e a casa inteira, menos ela que permanecia conectada ao descansar doce, respirando de leve e suspirando sempre que expulsava o ar.

Ele não fazia ideia de quanto tempo ficara ali apenas observando o jeito como ela dormia, só lembrava que a penumbra da noite ainda os encobria quando o fez, mas tinha mesmo era medo do que aquilo provocava: ali tão calada e indefesa, protegida pelas cortinas que do lado dela ainda faziam sombra, ele sentiu uma vontade estranha de protegê-la de tudo.

Teve de controlar um riso triste que pretendia cortar a sua garganta quando concluiu que aquele sentimento estranho e quase solidificado dentro ele era proteção.

Como ele iria protegê-la e salvá-la, sem ter conseguido salvar sequer a si mesmo?

Havia alguns dias que ele estava limpo. Não tinham cheirado, nem fumado, nem bebido nada. Quase conseguia respirar direito e era bom pelo menos uma vez acordar com gosto de hálito, e não de vomito, no fundo da garganta. O sol não lhe incomodava tanto, nem o vento, nem nada, exceto ela. Justo ela que deveria ser a única coisa confortável no meio de tudo.

Mas, ele sabia que aquilo era apenas passageiro. Sabia que quando o sol voltasse a dormir e o corpo quente dela não estivesse completamente colado ao dele como agora, ele voltaria a ser o mesmo drogado que vaga por ruas tão tortas e sujas quanto os seus pensamentos, suas intenções. Roubar em nome do seu grande e único amor, o vício, era sua única pretensão, sua grande luta.

A única coisa que ele tinha certeza naquele momento era de que é precisava deixa-la ir.

O problema é que ele havia se acostumado com o corpo quente dela, com os afagares dela, com os risos altos dela, que depois de uma semana ali naquele apartamento imundo, havia se espalhado de tal modo que era quase impossível juntá-la novamente. Mas, ele sabia que precisava fazer isso.

Pensou como os pais dela deveriam estar preocupados imaginando a menina inteligente e linda que criaram com tanto amor jogada num lugar qualquer, numa cama qualquer com um vagabundo, em meios às seringas, cervejas e cigarros. Eles tinham razão de amaldiçoa-lo todos os dias.

Então, a mão dela, que repousava sobre o peito açudo dele, mexeu-se. Os pés gelados dela procuravam os dele, igualmente gelados. Então, um olho de cada vez, ela acordou. Parecia um pouco atordoada ainda do sonho. Deslizou a perna lisa nos pelos grossos da perna dele. Ele retirou uma mecha que encobria um dos olhos dela e sorriu terno.

– Há quanto tempo você está me olhando...? – ela falou rouca, agora com um tanto de rubor nas bochechas. – Algumas horas. – ele riu observando-a corar mais ainda depois disso. Ela escondeu o rosto dentro do travesseiro e ele procurou armazenar todos os detalhes que pudesse sobre ela. Retirou o rosto dela do travesseiro, puxou-a novamente para o seu peito e fez com que todo o corpo dela colasse ao dele. Armazenou a sensação. Beijou-a na testa, sentiu o cheiro do cabelo dela. – Hoje a noite tenho uma surpresa pra você. – e logo ela abriu aquele sorriso ansioso que ele tanto gostava. – E o que é?! Vamos, me diga! – disse apressada. – Não, deixe pra noite mesmo. Agora fique aqui quietinha comigo e finja que o mundo lá fora não existe...

... Antes que ele me roube novamente a felicidade clandestina, meu anjo, sonhe que em um mundo perfeito nós dois estamos juntos e que você é meu único amor. E que isso não vai te destruir no final. Porque nós dois sabemos que vai. E, por mais que doa, esse é o melhor jeito que conheço de protege-la (de mim e dos meus erros), porque sabemos que esse amor já nasceu condenado. 

7 comentários:

  1. Admirável esse seu jeito de escrever,de envolver o leitor.Parabéns :]

    ResponderExcluir
  2. Quisera ser apenas um simples leitor...

    ResponderExcluir
  3. Que saudade tava daqui, realmente essa Ilzy é uma diva das palavras :)

    ResponderExcluir
  4. Quantos contos maravilhosos! Amei aqui, amei mesmo. Estou te seguindo! Parabéns pelo trabalho!

    ResponderExcluir
  5. Percebeu que vc tem escrito um pouco mais poéticamente?! Está uma beleza de conto! Adorei!

    Beijos enormes e PARABENS!

    Muah!

    ResponderExcluir
  6. Quando penso que já escolhi meu conto favorito aparece outro melhor ainda! Seus contos são lindos! Parabéns. :D

    ResponderExcluir