O cheiro que fica no convés

18 dezembro 2011 /



Dedicado à Pedro Alcino,
dono do primeiro vislumbre dessa estória,
cuja me fora desafiado escrever.

Summer '78 - Yann Tiersen

Tudo ali em baixo tinha cheiro de metal sendo corroído pouco a pouco pelo sal das águas. O ar entrava pesado no pulmão, pra depois sair com dificuldade ainda maior. O barco balançava suave fazendo as pessoas parecerem corredores em seus cavalos, só que numa slow-motion bem mais devagar que o normal. Isso era meio nauseante... Mas agora nós já não víamos as pessoas.

O Miguel me disse pra não soltar a mão dele e parecia sério. Então meus dedos menores que os dele - embora tivéssemos a mesma idade - estavam na mão dele e era o único lugar ali que não parecia frio.

Nós estamos perdidos, eu sabia, mas o Miguel ficava repetindo que não. Acho que essa idéia o apavorava, então ele a afastava simplesmente negando sua existência. Ele ficava dizendo "sei exatamente onde estamos e vamos voltar pras nossas cabines" o tempo todo, e quando dizia isso puxava ainda mais os meus dedos para que eu apressasse o passo. Nunca gostei de ser mais baixo que ele, parecia que isso - a altura - fazia dele o líder.

O corredor escuro parecia nos engolir a cada novo passo e usar disso para ficar ainda maior. Havia uma luz forte lá no final, no que parecia uma porta pra uma escada ou algo assim. O Miguel ficava dizendo que aquele deveria ser o convés, que com certeza era a escada para o convés, porque dava pra ouvir os fogos agora, mas eu sabia que, mesmo que fosse, não poderíamos encontrar nossos pais na confusão dos fogos.

Quando nossos passos finalmente alcançaram a escadaria iluminada, escutamos o barulho da multidão. Os fogos começariam a ser lançados em alguns minutos e iluminariam completamente o céu, ali na baia onde sempre passávamos as férias e que, esse ano, nossos pais finalmente conseguiram uma reserva nesse barco enorme, para ver os fogos diretamente de onde eles eram lançados.

O Baia dos fogos era um desses transatlânticos velhos e imponente. Num tom de branco desbotado e azul marinho descascando nas bordas. Era antigo, mas sólido como uma pedra. O capitão – um homem desses que parecia ter saído de um filme antigo, com seu uniforme bem engomado, sua barba e cabelos brancos e ar de quem entende tudo sobre o mar - ficava numa cabine, observando a todos. Se alguém o olhasse agora, o veria sorrindo discretamente por entre os fios brancos.

Os meus lábios se curvavam numa linha torta pra baixo, enquanto os do Miguel formavam uma linha dura de preocupação. A multidão estava toda concentrada no convés. Estávamos a bombordo* (o capitão havia dado uma palestra no dia anterior e nos ensinado alguns termos) bem na margem final do barco. Precisaríamos atravessar todo aquele mar de pessoas que olhavam pra cima se quiséssemos chegar às escadas que levavam as cabines. 

O Miguel teve a ideia de irmos bem próximos às grades de metal que protegiam os tripulantes. Naquele momento um alto falante soou com ruído e a voz de um radialista famoso fez-se prelúdio de que estávamos prestes a soltar os fogos. Miguel apressou mais ainda os passos. Éramos comprimidos contra a grade pela multidão de sorrisos, ansiedade e alegria. Eu continuava com os meus lábios formando um sorriso invertido. Mamãe ia me matar...

O locutor deu início a contagem. As pessoas começam a aproximar-se cada vez mais da grade de proteção pra ver melhor os fogos que estavam a estibordo* e são lançados em direção ao céu entre o barco e a praia, que já estava também muito cheia. Miguel e eu estávamos cada vez mais comprimidos contra o único grosso metal que fazia a proteção. Todas as luzes foram apagas e só se podia ouvir a voz das pessoas em uníssono.

Então senti a mão do Miguel escorregar da minha enquanto a multidão gritava 5. Tateei no escuro e não encontrei nada, enquanto um peso estranho se formava entre o meu coração e os meus pulmões, a multidão gritou 4. Procurei apertar os olhos e estão notei que algo se mexia no mar lá em baixo, além das leves ondas formadas pelo barco. A multidão gritou 3. Meus olhos saltaram em choque quando percebi que o Miguel havia caído e comecei a gritar as pessoas ao redor, empurrá-las, mas minha voz foi perdida em meio ao 2. Empurrei e gritei, mas as pessoas não ouviram nos segundos mais longos e angustiantes da minha vida. 

Todos gritaram um e se abraçaram, 
Enquanto tudo que eu soube fazer foi correr em direção à cabine do capitão. 

Bem, eu ainda não sei como consegui, mas julgo ser uma daquelas forças que estocamos dentro do nosso corpo para o momento de pleno desespero. Em todo caso, quando cheguei lá ofegante, abrir a porta sem nenhuma educação. O capital me lançou um olhar sério e então gritei "Homem ao mar!" como ele havia nos ensinado.

Todos os tripulantes começaram então uma confusão. Pediram-me pra indicar onde e eu o fiz. Quando vi estavam anunciando algo no microfone e toda a multidão se agitou de um modo angustiante. Colocaram-me um cobertor sobre os ombros como fazem nos filmes enquanto fazia mil perguntas. Tentei responder algumas delas, mas em todas pedia para que eles fossem buscar logo o Miguel, ou perguntava se já o haviam feito. O desespero em mim aumentava cada vez mais: porque eles estavam preocupados comigo se era o Miguel que estava lá embaixo no frio?!

Uma hora depois, quando decidi que se ninguém faria nada a respeito, eu mesmo faria, uma senhora vestida de branco me pediu para tomar suco que estava num copo de plástico e eu o fiz. Não me lembro de mais nada daquela noite depois de engolir...

Não tive mais noticias do Miguel desde aquela noite.

Quase um mês depois, os meus pais me chamaram pra conversar sobre o Miguel e disseram que agora ele era um anjo, e, sabe, apesar de parecer meio ilógico, eu acreditei. Os anjos não podem nadar, as asas ficariam molhadas e eles não conseguem voar depois, igual os pássaros.

Espero que um dia o Miguel consiga secar suas asas e volte, tem sido difícil sem ele...


Notas:
bombordo: lado esquerdo da embarcação.
estibordo: lado direito da embarcação.

8 comentários:

  1. que lindo Ilzy, e ao mesmo tempo trágico :/

    ameeei *--*

    jeansepoesia@hotmail.com

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  2. Nossa, bota trágico nisso! Que tristeza! Mas é mtu bonito, mtu bem escrito!

    ='/ emocionante, parabens, Ilzy!

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  3. Que lindo Ilzy. Sem palavras, muito lindo (:

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  4. Que lindo Ilzy, perfeito.
    Isso é particular mas, eu prefiro textos tragicos a textos que terminam com sorriso, talvez eu seja meio dramática mesmo.
    Pra variar, ler me causou arrepios e quase lágrimas.
    Amei. Como sempre

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  5. Mesmo triste, é ótimo pra refletir. LINDO, parabéns!!
    Beijos e já seguindo o blog.
    http://tofixaheart.blogspot.com/

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  6. Um conto capaz de mexer com as emoções, mesmo que breve (o que não poderia ser de outra forma, pq já não seria um conto).
    Ótimas descrições, o que acaba por ambientar perfeitamente o leitor à situação dos personagens.

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  7. Que lindo! Esse foi um dos contos que me fez chorar! A inocência da outra personagem é tocante! :')

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  8. Resolvi comentar pq não é a primeira vez que leio e mesmo conhecendo o final, lágrimas me vieram aos olhos. Acho engraçado como suas palavras são fortes e o quanto elas mechem comigo.

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