Os amantes de si

01 dezembro 2011 /



Esse não é o melhor jeito de começar dezembro,
Mas, você sabe que estes defeitos são nossos, falso-imperador.

Pra ouvir: I miss you - Incubus

As roupas amassadas saltavam pelas malas e as garrafas de cerveja ainda com algum conteúdo se espalhavam pelos cantos do quarto enquanto a luz fraca do sol lá fora, entre árvores e folhas, se fazia suave e terna, mas não protetora.

Os braços finos de Lorelay abraçavam seus joelhos enquanto ela observava pela vidraça manchada a vida escondida lá fora, nos campos que também escondiam aquele casebre herdado do avô e pra onde eles costumavam fugir nesses fins de semana em que o mundo parece sufocar, misturando-se à vida que também se escondida ali.

Ambos tinham um alguém que não era outro ali ao lado. Ela costumava dizer que precisava visitar seus pais na cidadezinha em que nasceu e ele dizia que tinha um tio doente ou algo assim - era uma família realmente doente essa dele, ela deveria pensar e Lorelay ria-se disso, mas não por diversão.

Então socavam tudo que estava ao alcance do braço esticado dentro do guarda-roupa e depois dentro de uma mala surrada pra então ele aparecer de madrugada na casa dela, jogando tudo dentro do banco de trás e selando seus lábios com um beijo amargo. Ela encostava a cabeça no vidro gelado do carro dele e ele colocava a mão no joelho dela. Sorriam pelo prazer da fuga, embora não estivessem necessariamente felizes.

Acredite: nada disso tem haver com Amor.

Era unicamente desejo. Essa luxuria que possui os corpos que tem uma vida lá fora, que sabem que não podem destruí-la porque é confortável viver numa ilusão pra sobreviver a nojeira que o mundo é, porém que também não sabem se ausentar completamente dos seus desejos.

E quando o observava assim, com as pálpebras dele impedindo que o castanho-medonho (ela gostava de chamar o castanho dos olhos dele assim) escorresse para ela e uma das pernas dele puxava o pé para caber na altura da cama que era menor que ele, talvez ela até o amasse.

Mas, segundos depois, lembrava do sorriso dele quando estava certo e fazia questão de provar isso, ou quando o egocentrismo dele saltava pelas palavras das suas frases, ou quando ele passava tanto tempo sem ligar que ela chegava mesmo a pensar que havia acabado e quando ela finalmente estava conseguindo esquecê-lo, ele ligava na madrugada só pra dizer que queria um colo e queria o dela.

E ela via a si mesma em todos os defeitos dele.

E é verdade dizer que eles tentaram mesmo manter algo concreto, mas não conseguiam. Ela gostava de estar livre e ele de prender. Ele gostava de ficar em casa e ela de sair por ai sem qualquer destino. Ele era um covarde que havia desistido de lutar e escolhido o caminho mais fácil que não o preenchia por completo, mas que pelo menos não lhe custava grandes esforços. Enquanto ela permanecia tentando montar algo-pra-depois, tentando ser menos imediatista, depositando esperanças neles, construindo algo que no final não passava de nada além daquilo. E ela também seguiu em frente, mas não soube se desprender do desejo egoísta de que ter ele era ter mais-de-si. 

Talvez fosse mesmo isso que os unisse: já que não havia amor ou algum sentimento doce, havia compreensão que o outro era mesmo esse monstro-hipócrita-e-insensível, mas que ali não havia julgamento, não havia além. Eram somente os dois, vendo um ao outro no reflexo da retina e despertando o pior do outro, mas de alguma forma o prendendo e controlando.

Recordou, então, a noite anterior, quando ele lhe levantava pelas coxas e lhe beijava encostada na parede no casebre frio que mal era iluminado pelas brechas da madeira velha, ardendo de desejo-do-outro, embora os dois soubessem que na verdade era mais um desejo-de-si. E eles beijavam cada linha um do outro, mas nunca chegavam à consumação... Sempre parecia demais, parecia que se fosse até lá, se fundiriam num só coisa da qual os dois temiam. Liga-se por completo física e mentalmente, e então nunca mais poder se soltar.

Então ele encostava o corpo semi-nu ao dela, agora com o desejo cessado, ali próximo à onde o pescoço dela fazia um curva com o ombro e ela sentia o suor da testa e do cabelo dele misturando-se ao seu suor, enquanto acariciava o cabelo dele e ele apertava os braços em sua cintura, e ficavam assim, em silêncio até adormecerem. Naquele momento até pareciam mesmo amar um ao outro...

Tudo isso era essa relação doentia de falta de amor, de confiança, de dominação, mas que sobrava desejo. Era essa prisão da qual nem um, nem o outro podia fugir, embora lutasse e quisesse. Esse amor ao contrário. Esse sufocar por concessão. Esse encontrar e desejar o outro que tão parecia consigo só por querer mais de si, embora não pudesse suportar.


- E eu vos declaro amantes até que o amor próprio se restaure.

10 comentários:

  1. Eu a-do-rei!!!! Sujo sujo sujo!!!! hahahahaahhaha, beijos Ilzy!

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  2. Ilzy, vc escreve maravilhosamente bem, mas esse texto...
    A-DO-REI!² como disse a Bruna: sujo.. kkkk
    Mas mto cheio de coisas que a maioria tenta esconder e sufocar, e que no fundo não fazem sentido algum... tá, tá... eu sei! me identifiquei demais coom ele.. kkk
    Mas está perfeito, simples assim...
    Bejitos!

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  3. "- E eu vos declaro amantes até que o amor próprio se restaure."

    Amei, amei, amei. Muito bom o conto Ilzy. Você sabe lidar perfeitamente com as palavras e faz contos tão realistas que as pessoas se identificam. A-M-E-I *--*

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  4. é petulância dizer que eu terminei de ler com falta de ar ?! porque você, mais que ninguém, sabe que acabou de publicar aqui a minha alma, o meu coração e todas as suas confissões e impurezas. você sempre arrasa com a minha vida escrevendo assim: por favor, não para nunca. ♥

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  5. é bem melhor quando o amor não se restaura. é bem melhor quando a gente é simplesmente aceito pela nossa complexidade... adoreeei!

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  6. Talvez seja pela idade, mas o conto não me despertou tanto ardor, como nos outros comentários.

    Posso imaginar seus personagens com mais de 20 anos de casados, cuja paixão se foi, o amor não veio e o desejo de algo inatingível é substituído por carícias picantes.

    Ok. Posso ser e estar velho para comentar, mas ainda acho que você deveria arriscar mais no momento "a dois". :)

    Tu tem uma boa imaginação para contos, Ilzy.

    Beijão
    http://www.folhetimonline.com.br

    PS: Como não há campo para colocar o nome e o endereço do site, deixei no comentário.

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  7. O que mais é preciso dizer? seus textos são incríveis, e esse não é uma exceção.
    http://saiadeflorbm.blogspot.com

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  8. "- E eu vos declaro amantes até que o amor próprio se restaure." Amei!!! *--* Você escreve contos maravilhosos e esse não é exceção. *-*

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