Escrito ao som de Hold the morning - Hey Marseilles
Deslizava todos os dias pelas ruas com os passos preguiçosos e aquele ar de quem não se surpreende com nada mais, num daqueles dias em que se acorda não esperando que o dia seja bom, mas apenas que não demore muito pra acabar. Abrindo a bolsa só pra se certificar de que os bons pensamentos ainda estavam ali, empoeirados entre chaves, moedas e a agenda de compromissos dos quais ela preferia não comparecer.
Os poros exalando cansaço, embora o dia mal tivesse começado e ela tivesse dormido a noite toda. O corpo estava inteiro, mas a alma já havia morrido há muito. Os pensamentos mendigando qualquer coisa útil, qualquer sonho novo, qualquer encanto passageiro. Qualquer coisa exceto essa rotina. Só mais uma dessas que esconde vazio com maquiagem, salto alto e batons em lábios que não sorriem mais.
Não era especial tristeza, sofrimento, nem nada disso. Era só um imenso vazio, um ceticismo esquerdista violento. Sejamos honestos: depois de algumas doses de literatura, filosofia e realidade, você acaba desacreditando da vida.
Mas, é preciso continuar seguindo como todos os outros. É preciso andar preguiçosa pelas ruas esperando que alguém especial - desses que gostam de boa música, que pintam quadros ou tocam algum instrumento, que lêem clássicos e todas essas coisas que dizem as pessoas inteligentes fazem - bata no seu ombro, jogue suas coisas no chão e as recolha te convidando pra um café, mas sabe é preciso que o segredo seja revelado: as melhores pessoas estão em casa, lendo algo, escrevendo algo e lamentando por não conhecer outras pessoas tão boas quanto elas. É melhor não esperar esbarrar com elas por ai...
Segue sobrevivendo de passado, de lembranças de pessoas que foram e não voltaram mais, de pessoas que nunca vieram, que nunca existiram. Existindo bem mais dentro de si que para o mundo e mesmo assim deslizando pelas ruas com aquele ar de superioridade. Não pense que ele é bom, que esse ar torna as pessoas melhores que as outras. Aquele ar era quase um veneno sedutor inalável por todos os poros de todas as pessoas que ainda não havia chegado naquele degrau e o almejavam. As pessoas morrem todos os dias com ele e mal sabem disso.
Se ela pudesse, gostaria de voltar a ser só aquela menininha boba e apaixonada, ela sim sabia viver, sabia sentir. Invejava qualquer apaixonado bobo, só por saber que mesmo sofrendo, mesmo doendo, ele ainda era bem melhor que tudo que ela poderia ser.
Em todo caso, isso eram somente pensamentos, só alguns desejos tortos de quem não têm mais no que pensar por já ter pensado em tudo. E então ela chegava à padaria de costume, pedia o de sempre e abria um novo livro, uma nova ilusão, um novo motivo pra fugir dela mesma e desses pensamentos, mesmo sem conseguir, pois continuava pensando em como seria se ela não fosse a assassina do melhor que havia nela.
Porque, agora sabemos, triste mesmo é quando você é o assassino do que há de melhor em você.
...
Nota da autora: Não tenho certeza se isso é um conto, uma crônica, uma auto-reflexão ou um simples desabafo, mas quis compartilhar com vocês.
Como sempre, obrigada pelo carinho, especialmente nos comentários do ultimo post.
Em breve teremos bebido 50.000 xícaras de café, e elas serão as melhores que já tomei. Gostaria de agradecer de já por serem meus (não apenas leitores, não apenas amigos de alma, mas simplesmente meus, bem como sou plenamente de vocês) e por tudo que já passamos por aqui.
Essa é a cicatriz mais bonita da minha alma e devo a vocês, meus lindos.
A personagem é a corporificação do vazio existencial, do cansaço de tanto esperar e procurar que mutilara todos os seus ânimos. Sinto seu andar quase vegetativo. Sua atmosfera abafadiça.
ResponderExcluirSeu texto é uma espécie de meditação: começa do estado zero e acabado, de onde poderia haver outros textos que mostram a galgando do ceticismo e do vazio para algumas configurações que a levarão para «aquém da completude.»
Na moça do texto; não a senti com contornos, mas em estado amorfo. Se «ela pudesse, gostaria de voltar a ser só aquele menininha boba e apaixonada, ela sim sabia viver, sabia sentir», no entanto, depois de tudo, esta configuração se desgastou e agora está sem referências.
No final do texto, não há uma lição, um caminho reconhecido, mas a contínua suspensão do juízo, e apenas uma pálida receptividade para o novo.
Depois que os significados pessoais se dissolvem, nos volvemos para as questões mais constitutivas da existência, e «como seria se ela não fosse a assassina do melhor que havia nela», a conduzirá lentamente para a reconstituição de si mesma.
...?
Eu pronunciei a palavra 'porra' no meio do texto. Geralmente não comento muito em blogs (porque eu sempre tendo pro clichê), mas isso me tirou o fôlego. O ceticismo, o vazio, a Náusea hahaha, tudo que eu tava pensando nesses meses... Entrar em contato com tanta coisa boa, tantas ideias, sufoca e traz tudo isso que você descreveu muito bem! Talvez isso não seja conto, uma crônica, uma auto-reflexão ou um simples desabafo e se encaixe mais numa epifania (?). A que EU tive lendo tudo isso. ;*
ResponderExcluirSabe querida Ilzy, eu acabei de twittar antes de começar a ler suas linhas que está ocorrendo um surto de insgths(ideias súbitas emergidas ao mesmo tempo em diversos lugares) sobre o vazio esses tempos, e é verdade, é diante do mesmo vazio que me deparei há alguns dias e ainda estou contemplando-o. me senti lendo sobre minha própria vida, sobre a nostalgia e pó que tenho vivido, lendo as minhas paginas já amareladas e frágeis, obrigado por traduzir em linhas sentimentos a tempos compartilhados.
ResponderExcluirbjãozão
Nynna
Oie! Eu adorei a reflexão!!! É uma crônica, eu acho! Ando meio confusa sobre seu gênero de escrita, tem mudado um pouco! Mas, tá ótimo, como sempre!
ResponderExcluirBeijo, minha inspiradora!!!
http://sintatambem.blogspot.com
Amei o texto, que isso!
ResponderExcluirMuitas vezes não sentimos vontade de fazer nada. Nem de respirar, nem de falar; muito menos de viver. Mas é preciso continuar, crescer, evoluir. Enquanto isso, talvez esperemos alguém que nos ajude, alguém que nos admire, e que nós também admiremos.
muito lindo Ilzy, caiu como luva para mim hoje. comigo acontece isso, depois de ler tantos livros, ler tantas teses, as coisas começam a parecer estragadas, fica aqule q de "poderia ser melhor" .
ResponderExcluirOi Ilzy tudo bem?
ResponderExcluirGostei myo do que vc escreve :0)
Se por um acaso vc gostar do que escrevo poderíamos trocar links!
http://poesiapensamento.blogspot.com/
Um bj
isso me fez chorar :/
ResponderExcluireu gosto muito ler os seus textos,não deixe de postar não viu.
ResponderExcluirVocê tem tanto jeito com as palavras. Me identifico com alguns dos seus contos. Parabéns! :)
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