Divagando devagar

27 dezembro 2011 /



Vagalumes Cegos - Cícero

Em um começo de manhã, um pequeno pássaro bebericou a poça d'água que se formou num buraco no chão da praça perto da mangueira velha, enquanto o céu anunciava o próximo pranto. Na casa ao lado da praça uma menina sentava-se na janela com fones de ouvidos e a vibração da música corria pelas suas pernas que tremiam enquanto a ponta do pé era comprimida contra a madeira da janela fazendo a pele morena parecer morta.

Caetano soava em seus ouvidos e nada daquilo parecia o tipo da coisa que os jovens da idade dela fazia hoje em dia. Não há mais amor ao que é realmente belo nesses nossos tempos, é verdade, mas isso nunca impediu que os que ainda o alimentam em si continuem tentando manter viva a semente. 

E nem o frio atípico daquela manhã impediu que aquela figura surgisse como de costume e sentasse no banco ainda meio molhado e fixasse os olhos num ponto do céu cinza. Ela brincou de perguntar a si mesma o que ele trazia nos seus fones e tentou responder rindo-se sem humor quando pensou que ele também poderia trazer o seu Caetano por ali. Duvidava, é bem verdade que muito duvidava, mas como (ainda) não há impostos para os sonhos, ela permitia-se desfrutá-lo naquele tempo de divagar.

Perguntou-se como seria se simplesmente fosse corajosa, andasse até o banco ainda meio molhado no lado que ela sentaria e perguntasse se podia ficar. Imaginou que alguém que, como ela, ouvisse Caetano, fosse educado. Ele daria-lhe um riso sem graça, mas permitiria com prontidão. 

Então um silêncio desconfortável se instalaria, enquanto ambos olhavam para algum ponto do céu sem que realmente estivessem olhando, pois seus olhos perdiam o foco a procura de algo pra falar. Depois seria quebrado por uma apresentação. Claro, uma apresentação. Ela diria chamar Marília, porque sua mãe tinha desejos de ler esse livro quando grávida, e ele contaria que se chamava Henrique (ela achou que ele tivesse cara de Henrique ou de Arthur), mas só porque sua mãe chamava um nome bonito, não pelo rei. 

Depois da apresentação a conversa poderia ser mais suave, porque as pessoas costumam confiar mais quando sabem o nome umas das outras. Ela poderia perguntar o que ele estava ouvindo e então eles discutiriam sobre Chico, Nara, Gil, Bethânia e qualquer outra boa MPB. Depois, talvez, sobre Machado, Caio, Clarice, os Verrísimo, Alvarez de Azevedo e talvez ele gostasse de internacional também, então ela diria que não gosta de Dostoievski, e ele poderia ficar horrorizado, ela iria rir e ele poderia rir do riso dela. Pra então ela comentar que sempre preferiu drama, mas amava Woody Allen, e ele rir dizendo que gostava de qualquer filme com trilha sonora de Nino Rota.

E quando a manhã de fato vier calma e os raios afagarem seus rostos, eles já estiriam bem mais próximos que o habitual a dois semi-conhecidos. Ele poderia beijar o ombro dela e ela afagar suavemente o rosto dele enquanto olhava para o reflexo de si mesmo nos olhos, sorrindo com vergonha e medo. E o mesmo pássaro bebericaria a mesma poça d'água já quase seca quando ele finalmente colocaria a mão por cima da dela que descansava esperando que os dedos deles se cruzarem aos dela. Pra então ela sentir que parecia completa. 

Mas, ela acordaria maldizendo a si mesma, pois tudo isso são só pensamentos de medrosa que era, simplesmente desistindo de si e preferindo fechar a janela que ir lá fora viver a própria vida que lhe esperava. Ela suspirou pesadamente como se carregasse o peso do mundo nós ombros e espiou mais uma vez o lado, agora vazio, de onde ele estava sentado. 

Mais uma vez ela o havia deixado ir. 

...

NOTA DA AUTORA; Não sei, venho me perdendo dentro da minha própria literatura, mas estou tentando me encontrar novamente. Me desejem sorte.

Esse era pra ser meu presente de Natal pra vocês, mas só consegui terminá-lo agora, então fica como presente de Ano Novo. Aliás, desejo tudo de melhor pra todos vocês nesse ano que se inicia, muito obrigada por permanecerem comigo aqui todo esse tempo e não esqueçam: quem escreve sua história é você mesmo, então, trabalhe pelo seu final feliz regando sua alma com coisas boas. Boa festas e até ano que vêm :)

10 comentários:

  1. Tão bom divagar, criar personagens, imaginar pessoas maravilhosas como esse cara. Acho que a sua grande 'carta na manga (?)' é escrever o que todo mundo já sentiu, mas sem parecer clichê.
    Divagar devagar. Mas, na hora certa, agir. Difícil...
    Feliz ano novo pra você, ilzy, beijos ;*

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  2. Se você tem se sentido perdida com mais este conto tão inspirado, imagine o que será de tantos outros escritores que não conseguem transpor para o papel o texto almejado. Seu talento não é algo que se perca tão fácil. Parabéns Ilzy!

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  3. Lindíssimo conto, um dos melhores. Não acho que você esteja se "perdendo", mas encontrando novas formas de descrever o que sente.

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  4. Liindo, e, que é isso Ilzy? Você não tá se perdendo, só está descobrindo partes de vc que antes não sabia que existiam! Como vc mesma diria "Não é um fim, mas um novo começo" Parabéns pelo texto, liindo...

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  5. Nossa ! Estah lindooooo!!! Perfeito! O primeiro parágrafo me prendeu e eu reli! Vc esta ótima e se reencontrar pode ser um desafio pra você e um deleite para nohs ver sua caminhada incrível pelas personagens habitantes dessa sua mente maravilhosa! Tenho muito orgulho do seu crescimento como escritora!

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  6. Adoro seus textos, e aconteceu algo mto parecido coomigo,http://vidalyah.wordpress.com/tag/platonico/

    Desejo a ti um 2012, cheio de amor e paz :)

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  7. Pelo contador ali do canto sou o único ser humano no blog as 01:47 da manhã. Não li nenhum por completo (apenas alguns trechos). Mas uma pergunta - levando em consideração que é a primeira vez que eu venho no seu blog, e que acabei de ler os comentários pra ver se ainda estava ativo (risos) - já pensou em publicar? Acho que muita gente já te falou a mesma coisa. É que sua voz de escritora é diferente. Pelo que eu li não parece ser aqueles textinhos que encontramos no Tumblr de garotas apaixonadas. Também sou apaixonado por literatura. Tenho algumas histórias no meu computador, um blog onde de vez em quando escrevo alguma coisa, e te adicionei no facebook. Espero manter mais contato.

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  8. Não to sendo um baba ovo que fica elogiando todo mundo pra receber uns "curtir". Muito pelo contrário. Se eu não gosto de algo (...). Mas comentei mesmo pra saber mais sobre o que você escreve. Será que é só sobre amor? Histórias românticas? Fiquei curioso mas estou com sono demais pra ler qualquer coisa agora. Novamente, foi apenas um comentário, não sou "desses ai" - sem ofensas aos seus leitores, também por que não estou me referindo à eles - apenas comentei que alguns entram e falam "adorei seu blog" sendo que não entendeu uma palavra sequer, muito menos conseguiu captar o verdadeiro significado do texto. Obrigado.

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  9. Incrível! Também adoro divagar, sonhar acordada. É bem mais fácil e emocionante do que viver na realidade. :)

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