Super ação, superação I

29 outubro 2011 /


Pra ouvir: Dust lane - Yann Tiersen

Apertava o dedo indicador na campainha e sempre se lembrava de como odiava aquele barulho estridente que, dentro dela, parecia uma imensa denúncia. De novo, então? Mais veneno? Você não cansa, é isso? Todos os vizinhos sabem como você é uma drogada inconsertável, todos eles estão espiando pela brecha da fechadura e rindo-se de você.

Ou isso é só paranóia, vai saber... Por precaução, ela olhou para os lados discretamente. Não havia ninguém. Dando de ombros, aguardou segurando uma mão na outra de impaciência e com certo medo, pois nunca sabia que rosto atenderia a porta. Era sempre o dele, mas nunca o mesmo.

Então tirou os fones apertados dos ouvidos na última parte do refrão. Verificou os coturnos desamarrados, os shorts que um dia foram uma calça e aquela camiseta folgada de algo-bom-e-velho-rock-decadente. Nem sabia se ainda existia carmim no batom, ou preto no lápis. Mas, era tudo que ela conseguia juntar de si mesma após aquele dia cansativo.

Então a fechadura gemeu, a porta rangeu e um brilho denso do dia tomou conta da sala meio escura. Vinha sem camisa, - ele nunca vestia uma - os coturno também desamarrados, um jeans surrado que sempre usava e os ombros caídos. Parecia que tinha acabado de acordar, mas essa era só a cara habitual. Estranho era aquela postura de defesa cansada. Ela nunca tinha visto aquela.

– Sim? - ele disse ríspido como costumava falar. Não porque não me queria ali, era mais pra se defender de mim. Do mesmo modo com que precisava me defender dele, era o modo com que ele se defendia de mim. Um fazia mal ao outro, embora estivéssemos sempre juntos. 

– Você sumiu... - declarei, simplesmente, entrando como se a casa fosse minha, sentando-me num dos bancos do balcão da cozinha como se a casa fosse minha e pegando a garrafa de vodca pra beber da boca, como se fosse minha. Do mesmo modo com que ele sabia invadir minhas lembranças, minha morada e minha vida, eu também sabia forçar ele a minha presença, meu perfume, minha estadia.

– Às vezes eu estudo... - declarou e sentou à minha frente. Rendido, ombros caídos. E eu não gostava nada daquilo. No geral, ele teria reclamado da minha postura, da minha falta de modos, das minhas vestes, das minhas olheiras, de qualquer coisa, porra, ele sempre reclamava. Só que, dessa vez, nada.

– Que houve? - ele me olhou como se tivesse feito a única pergunta à qual ele não desejava de maneira nenhuma responder. – Ressaca. - e me olhou como se desejasse que aquilo me convencesse, embora soubesse que não ia. – Não parece... - ele soltou forte o ar pela narinas infladas, apoio os braços no balcão. Deu um risinho de quem sabia a (minha) resposta. – O que houve? - repeti, sem muito me importar.

Então ele apoiou os braços sobre a bancada, ainda com a cabeça baixa. Vi os músculos fortes das costas dele contraídos numa vontade de me ignorar, mesmo sabendo que não poderia. Ele não respondeu de imediato. Aceitei, eu também não queria responder por onde andei. Coloquei minhas mãos nos fios do cabelo dele. Baguncei, primeiro, sem qualquer molde ou forma. E então, ele começou a falar algo sobre drogas (essas de verdade), álcool, música ruim e vazias dessas que tocam em locais pra onde pessoas igualmente ruins e vazios costumam ir. Algo sobre meninas. Algo sobre qualquer coisa que não tinha nada haver com nós dois. Algo como uma fuga. De mim, de nós, dele mesmo... Não sei.

O que eu sabia, naquele momento, era que o havia perdido. Curioso como sempre sabemos quando perdemos alguém, sempre sabemos quando é hora de deixar a gaiola aberta e saber que os pássaros não voltarão. E quando ele terminou aquela história, olhou finalmente dentro dos meus olhos, fixou o verde-musgo dos dele no cor-de-lama dos meus. Eu sabia que precisava lhe entregar a chave, só não sabia mais como abrir a mão para isso. 

Esperou alguma reação minha. Qualquer uma. Eu não esbocei nada. Coloquei só minha mão pela última vez nos cabelos dele, dando forma então. Um arrepiadinho que me agradava. Sorri. Ele curiosamente sorriu também. Pura educação. Fiquei só mais uns minutos, só enquanto lembrava qual era mesmo o caminho da minha casa, pensando em algo pra pensar que não fosse aquilo, que não fosse ele.

Levantei-me, pro fim, como quem vai embora e ele como quem vai abrir a porta pra visita de saída. E quando finalmente a alcancei, olhei-o nos olhos e sorri novamente. Dessa vez ele não foi educado... Só estendeu os braços, me envolveu dentro deles. Era quente e tinha cheiro de pele quente e cafeína. Guardei aquilo e então fui embora.

Meu vício era ele, e achei mesmo que morreria de overdose se não pudesse me livrar disso.
Agora, talvez morra de abstinência. Condenei minh'alma no dia que decidir fundi-la a dele.

Aceito modestamente minha condição, e então te deixo voar e levar de mim o que restou de quem um dia foi feliz.

Vê se ti alimenta e não pensa que eu fui por não te amar[...] 
Pra que minha vida siga adiante.


II aqui

4 comentários:

  1. "Meu vício era ele, e achei mesmo que morreria de overdose se não pudesse me livrar disso.
    Agora, talvez morra de abstinência. Condenei minh'alma no dia que decidir fundi-la a dele.

    Aceito modestamente minha condição, e então te deixo voar e levar de mim o que restou de quem um dia foi feliz."

    Nem preciso dizer muito, Como não amar você e o seu blog, hêem !!?! ahh minha querida todos os contos são tão lindos que é até dificil dizer qual deve estar em seu livro. haushuashauh. Livro chegue logo !!autografado. ♥

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  2. Você escreve muito bem! Amei!
    Também amo escrever - você ama? aushauhs - e por isso no meu blog tem de tudo um pouco. Pena que por esses dias ande faltando inspiração...

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  3. Adorei o um e o dois.
    "O que eu sabia, naquele momento, era que o havia perdido. Curioso como sempre sabemos quando perdemos alguém, sempre sabemos quando é hora de deixar a gaiola aberta e saber que os pássaros não voltarão"
    O certo é que sempre sabemos, mas sempre é dificil ver isso como uma verdade né? Muito lindo o texto.

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  4. Triste e bonito ao mesmo tempo. Gostei! :)

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