Tristeza Clandestina

13 março 2016 / Tags:


à Linda Ferreira, 
estas palavras jamais serão as mesma sem você.

Para ouvir: All Dolled-Up in Straps - The National

Olhou pela fresta da janela como se espiasse, clandestina, e constatasse: há vida lá fora. Sentia frio, embora não fizesse frio, talvez a frieza que sentia por dentro agora escorresse até mesmo por fora. Aquela onda viscosa, pungente e apática que havia subtituído seu sangue finalmente encontrara o caminho para fora, mostrava-se ao mundo e

Ninguém se importava realmente. Nem ela, na verdade, ali de pijamas e com mais de quatorze horas seguidas de um sonho sem sonhos, sem descanso. Com lembranças de acordar sem mexer-se e de passos pelo quarto, do acender e apagar da luz que ela apenas sentia, ali escondida atrás das próprias pálpebras.

Mas, antes o sono sem descanso que as madrugadas insones, com cigarros, bebidas fortes demais e conversas filosóficas e políticas e amorosas e (por que não?) eróticas, para ver desesperadamente se alguém a conseguia fazer sentir algo além desse vazio imenso que sufoca e corrói e mata um pouco mais todo dia.

Levantou-se sem vontade. Queria um café. Pegou a panela: água, acúçar, pó na xícara, fogo, gás. O fogo esquentava a água e o fósforo iluminava seus dedos. A chama perigosa cada vez próxima e ela bravamente esperando-a queimar. Queimou: ação-reação largando o fósforo. O dedo latejava, correu para a torneira. A água fria parecia ela própria misturar-se a dor: parem carros e motos e obras e chamem Drummond, garanto que sentiu-se algo. Era feio, mas sentia-se. Breve segundo de vida.

Ignorando a vontade de abrir o forno, o gás e deitar a cabeça na grelha, colocou água na xícara, mexeu. Aproximou a boca da xícara, ali perto da asa onde estava meio lascadinha de tanto uso, e esperou a fumaça cobrir-lhe as lentes dos óculos por completo. Gostava daquilo. Dava a sensação de que os óculos finalmente mostravam o mundo como o via: formas indistintas em tons de cinza e
quando a fumaça dispersava-se, a vida não voltava a ser bonita como outrora.

Mantinha-se cinza e ela tão apática checava mensagens que não queria responder, cobranças por baixo da porta da alma: "nunca mais saímos", "podemos marcar algo", "pare de ser tão egoísta", "eu ia te convidar", "já arrumou um emprego?". Ignorando-as como se fosse uma devedora, envergonhada por não ter nada além daquele vazio a oferecer.



No quarto a meia luz foi a janela, apoiou a mão na fresta empoeirada, sentiu vontade de limpar tudo ali, cada mísero ponto daquele cubículo branco sem personalidade, deixar pronto para caso uma visita surpresa aparecesse como sempre faziam. Não achou forças em si para fazer nada além de ver a escada que levava a caixa d'água do prédio.

Ignorando a vontade de subir e jogar-se de lá, pegou o primeiro livro da pilha alta e deitou-se novamente. Palavras embaçadas cantavam as belezas de viver. E ela que costumava ler várias e várias páginas por dia, mal conseguia aguentar um capitulo. Desistiu, deitando na primeira posição desconfortável que achou. Não se mexeu por horas incontadas.

Sentiu uma mão quente tocar-lhe a pele fria. "Está doente?", a mão questionava. "Da alma, conta?", a voz que nem reconhecia mais respondia, para então fingir um sorriso tão bem ensaiado que já parecia verdadeiro. "Aproveite a sua preguiça, então, vou sair", respondia a mão, abandonando o toque.
Ignorando o pensamento de pegar todos os remédios da casa e bebê-los todos com a vodca pela metade na geladeira, levantou-se e lembrou-se do café frio. Bebeu mesmo assim, garganta seca que não passava.

Olhou-se no espelho: não era feia. As olheiras das noites insones e de chorar escondida no banho ou de madrugada quando ninguém via eram escondidas todos os dias por maquiagem, o brilho dos olhos que já perdera não precisava disfarçar pois ninguém prestava mesmo atenção aos olhos de ninguém hoje em dia. E apesar de saber que estava de frente a si mesma, não reconhecia ninguém. Levou as mãos ao rosto, tocou mas não sentia. Esfregou com força os dedos pelas bochechas, olhos, boca, nariz. Deixou marcas vermelhas e mesmo assim não sentia ninguém ali.

Deixou-se cair de costas na cama macia. Lembrou-se do compromisso marcado e tentou imaginar qual desculpa usaria daquela vez. Mentir virará rotina. Mentia tudo: fingia prestar atenção as conversas, fingia risos, fingia doenças imaginárias para não precisar sair de casa.

Ansiava tão desesperadamente por alguém que pudesse ver através de todo aquele fingimento, por uma mão que a puxasse de dentro de si mesma, por alguém cujo sorriso pudesse iluminar a escuridão. Porém, sabia que a única que estava ali por si era ela mesma e que não adiantava pedir socorro quando todos ao redor também tentam salvar a si mesmos e

Sabia disto porque uma vez pediu ajuda, sutilmente como sempre fazia, e logo julgaram seu vazio como tristeza e falaram que ela não tinha o direito de sentir nada além de felicidade, que deveria dar valor aos sacrifícios que os pais faziam por ela, que deveria pensar no mal que faria aos outros se colocasse fim aquilo tudo. Deveria pensar primeiro nos outros e, só assim se sobrasse tempo, pensar em si. Por fim veio o veredito: era egoísta e só queria chamar a atenção.

Decidira, então, engolir a dor e os pensamentos e chorar escondida quando precisasse. Como agora, sozinha, quando as lágrimas escorriam já tão acostumadas a escorrer que não sentia quando começavam. Encolhia-se abraçando os joelhos e deixava-se estar assim, desconfortavelmente próxima da própria dor. O sol despedia-se no horizonte: mais um dia vencido e

Não é a isto que chamam viver?
Pois deixa estar: (Sobre)viva.

2 comentários:

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