Os que ficam

24 agosto 2014 / Tags:


Para ouvir: I'm outta time - Oasis


Sentia-se no ar o leve cheiro de poeira acumulada. Ela dançava lentamente nos feixes da luz fraca da manhã. Incomodava o nariz mais sensível do rapaz que ainda não sabia como havia conseguido girar a chave e adentrar ali. 

Por semanas, caminhou decidido até o prédio e subia as escadas confiante. Mas, assim que visualizava o 303 da porta de madeira morta, toda a força que acumulou durante a semana se esvaia do seu corpo. 

O rapaz via-se aos poucos caindo aos pés dos números prateados, onde passava toda a manhã sentado brincando com a única chave que carregava na mão até que a vergonha fosse maior que ele e finalmente fosse embora sem sequer entrar. 

A velhinha que morava no apartamento da frente, o 304, já estava acostumada a vista do rapaz jogado no corredor todo domingo quando ia passear com o labrador que criava. O rapaz sabia que ela o conhecia porque, por dezenas de vezes, o viu sair dali de fininho no domingo pela manhã, assim como quem espreita por não ser encontrado por nenhum conhecido. Todas as vezes, trocava com ela um olhar de suplica. Ela sorria ternamente todas as vezes. Pela idade, já devia conhecer o amor quando o via.

Na primeira vez que o viu jogado no chão, uma semana após o ocorrido, trocou as únicas palavras que já direcionou a ele. "Sinto muito", disse ela, com sua voz macia e calma da velhice. Ele não sabia se ela estava falando da sua perda ou do fato de tê-lo apanhado em meio ao choro tão indiscreto pra ele que não chorava na frente de ninguém, exceto dela e agora da velhinha cujo nome nunca soube. 

Por trás do cheiro de poeira, o doce cheiro dela ainda habitava ali. 
Como quem entra num quarto onde alguém acabou de se perfumar para sair. 

Aquele cheiro costumava ser o melhor calmante que conhecia quando ainda morava no abraço dela. Se fechasse os olhos, ainda podia ouvir claramente os passos dela pelo assoalho de madeira. O barulho da aliança batendo na taça de cristal sempre cheia do vinho que tanto amava e tomava independente da hora ou do dia. A risada rouca caindo no sofá e dizendo que ele devia relaxar mais, aproveitar o belo da vida. Cada uma daquelas lembranças eram um lembrete da ausência dela. 

Doíam como da primeira vez que soube que não a veria mais. 


Ele tinha saído desse apartamento naquela manhã, como fazia todo domingo. No geral, o domingo começava alegre e ela dançava sozinha com a música que era uma constante naquele ambiente. Ele sabia que ela gostava de ter companhia. Convidava-o para juntar-se a ela e quando ele recusava, dançava em torno de si mesma rindo-se do quão ridícula era. Bebia até cair de joelhos na cama chorando, suplicando pelo marido morto e dormia bêbada com um soluço no meio da garganta enquanto ele lhe afagava o cabelo.

Só que daquela vez, ela não parecia precisar de consolo. 

Ele chegou até a pensar que ela finalmente conseguiria tirar a aliança. Ela fazia planos animados contando sobre como dali pra frente a dor não a incomodaria mais. Como não precisaria mais do vinho ou dos calmantes. Como, finalmente, ela havia chegado à solução da sua terrível dor.

A solução fora todos os remédios que restaram do marido morto pelo câncer. 
Mais de dez caixas regadas à vinho. 
Ele soube três dias depois. 

Estava trabalhando num complicado projeto arquitetônico de um banco sem graça. Ela não respondia suas mensagens ou atendia seus telefonemas desde o domingo. Ele, que nunca a visitava durante a semana, decidiu que iria até lá naquela noite. Ainda bem que não foi.  

A mãe dela estava tão atordoada que só lembrou de lhe avisar três dias depois. Ele sequer teve a oportunidade de a ver pela última vez, de dizer adeus apropriadamente. Não houve missa, porque ela não iria gostar. Do seu corpo foram tirados todos os orgãos que não morreram com ela e doados. O restante fora transformado em cinzas e espalhados pelo ar da pequena cidade onde nasceu. Tudo feito conforme o bilhete que ela havia deixado ordenava. 

No bilhete, ela não deixou nenhuma mensagem à ninguém. 
Nenhum pedido de desculpas, nenhuma explicação. 

Naquele mesmo telefonema, a mãe pediu-lhe um favor. As caixas que a mãe dela havia mandado estavam ao lado da porta. Estavam manchadas de algum líquido, provavelmente lágrimas. O trabalho que ela lhe pediu pra executar era simples, mas impossível de ser realizado em meio à dor: coletar tudo o que ela achava importante.O restante seria doado. 

Ele observou todo o apartamento e perguntou se existia caixa grande o suficiente para empacotar todas as lembranças. 

Uma raiva estranha lhe subiu as veias até chegar a cabeça. Ele pegou bruscamente uma das caixas e começou a passear decidido pelo apartamento. Se ela se achava no direito de ir sem deixar sequer um pedido de desculpas aos que dela gostava, ele podia muito bem não sentir sua falta. Estava farto de sentir saudades dela, que não pensou na dor que causaria em nenhum momento. 

Pegou o cd da banda preferida dela no som, jogou na caixa. Pegou o cobertor que ele usava para consolá-la em meio ao choro, quando deitavam-se no sofá cor de creme, jogou na caixa também. Foi a cozinha e achou uma garrafa vazia do vinho preferido dela, guardou também. 

Foi até o quarto. O local fedia a morte. Ele viu a taça preferida dela quebrada no chão, manchando o tapete felpudo de vermelho. Pegou o maior pedaço, que ainda guardava metade do copo e a aste e colocou por cima do cobertor dentro da caixa. Pegou os pijamas que ela gostava, com estampas de ursinhos. Olhou o criado mudo. O livro preferido dela praticamente morava ali e agora seria de repouso pros óculos. 

Ele sentou-se na cama, colocou os óculos dentro da caixa e abriu uma das marcações. O livro era uma coletânea com as cartas de Caio Fernando Abreu para amigos e amores. Várias páginas estavam marcadas com fotos. Para cada marcação, uma foto dela com alguém. Ele reconheceu a mãe, o irmão, o pai, a melhor amiga, a prima e a velhinha que morava no apartamento a frente. Desde o marido morreu, todas aquelas pessoas se revesavam durante a semana para visitá-la. Ele havia ficado com o domingo.

Por último, reconheceu seu rosto sorridente e o dela, num sorriso mais tímido, numa das cartas. Ele lembrava do dia que haviam tirado aquela foto. Lembrava que aquele sorriso havia se transformado em lágimas segundo depois. Não sabia que ela havia impresso e que a usava como marcador de página. 

Dentro daquela página, ela havia usado uma caneta trêmula para marcar uma frase. "Na minha memória - tão congestionada - e no meu coração - tão cheio de marcas e poços - você ocupa um dos lugares mais bonitos". 

Assim que o ponto final lhe chegou aos olhos, uma lágrima caiu na frase. Ele nem percebeu que havia começado a chorar. Chorava tanto ultimamente que já não sabia quando começava ou parava. Se perguntou se usando as palavras alheias, aquela era a carta de despedida dela àqueles que amava. Mesmo que não fosse, ele tomou aquilo como verdade. 

Abraçou o livro e encolheu-se na cama como um bebê. Chorou alto, como um cão ferido. Chorou como quem chorava de verdade pela primeira vez. Socou o travesseiro com todo ódio que sentia daquela saudade. Ninguém ouviu, ninguém fora lhe salvar. 

As piores dores que alguém pode sentir são invisíveis aos olhos dos outros.

...

NOTA DA AUTORA: É um conto bem triste, eu sei. Estava cozinhando ele a um bom tempo já e achei o momento apropriado para escrevê-lo. Não é o primeiro conto sobre suicídio aqui do blog, mas em tempos de tentar entender porque as pessoas fazem isso consigo mesma, especialmente pessoas que não tem aparentemente nenhum problema, acho importante lembrar que o maior problema da depressão é que as pessoas tem mania de colocar os problemas das outras numa balança. 

Cada um só sabe de si, amigos, e cada dor nos afeta de um modo diferente. O que parece pequeno para um pode destruir o mundo de outro. Se você estiver se sentindo triste e desmotivado com a vida, por favor, converse com alguém. Pode ser comigo aqui nos comentários de forma anônima, ou com alguém de sua confiança. Colocar a dor pra fora ajuda a entendê-la. Beijos.

Um comentário:

  1. Ilzy, tem como um conto seu não se incrível? É um conto triste, que faz uma lágrima escorrer pelo rosto ao ler. Você sabe passar os sentimentos através da tela do computador e isso é tão bom, é bonito. Parabéns.

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