Há pássaros que compartilham defeitos

19 maio 2011 /


Que tal alguma do Strokes?
Automatic Stop, cujas guitarras muito me agradam.
Coloque pra repetir.

Aquela quase quatro horas de uma quarta-feira de feriado nublado. Eu nunca fui fã de cacofonia. Nem de muitas pessoas num mesmo lugar. Nem de como meu coração parece estar sempre caindo de amores pela pessoa errada. Mas, não é o tipo de coisa que se pode controlar.

Eu sinceramente prefiro andar a pé.

Mas, naquele momento, minha pele era cortada por raios de sol que não aquecem, vindos daqueles vidros fumê, enquanto eu apoiava dolorosamente meu cotovelo na porta daquele carro desconhecido e observava o sol no horizonte, sem realmente estar interessada em ver ou não. 
 
Dentro do carro, Luis conversava animadamente com o motorista, enquanto tentava introduzi-lo aos nossos amigos ao meu lado. Eu queria matá-lo; estrangulá-lo até que a última rajada de ar saísse por sua garganta e então eu o cortaria em pedaçinhos e jogaria para os abutres. Mas, simplesmente lancei um olhar ao motorista do carro quando ele disse meu nome a titulo de apresentação. Ele sorriu para mim, eu o olhei e voltei à janela.

Observei o céu através do vidro e vi uma revoada de pássaros. Um suspiro cortou meus lábios. Admito: sinto muita inveja dos pássaros, porque veja bem: eles têm asas! Se não gostam de um lugar podem partir quando bem desejarem. Tudo que eu mais queria nesse momento era ter asas e poder sair daqui com uma batida que jogaria areia nos olhos de todo mundo.

Alguém sabe onde eu posso conseguir um par de asas?
Um suspiro, Dois suspiros. Pares de olhos em direção ao meu desencanto.


Meu celular vibrou em meu colo. Observei o a mensagem de "novo sms" e virei o display para baixo. Eu realmente não queria ler nenhuma coisa sobre como minha atual paixão estava preocupada por eu não poder aparecer no nosso encontro. Eu também não sabia como dizer que não iria.

Voltei à janela, mas o carro já havia parado.

Desci meio tonta, tropecei numa pedra irregular do calçamento e só não cai porque senti o braço do Luis na minha cintura. – Quer dizer que até pra andar você precisa de mim? – ele disse no meu ouvido enquanto eu me apoiava novamente nos mesmos próprios pés, tinha um tom de riso disfarçado na garganta. – Porque você não experimenta se jogar na frente daquele carro ali, Luis? – respondi  no mesmo tom, só que eu não estava brincando.

Ele riu e acompanhou o motorista do carro – que eu lembrava vagamente se chamar Yuri. O tal rapaz abriu a porta da casa e voltou ao carro, enquanto nosso grupo de amigos entrou como se sempre estivesse no local. Fui a última da fila. Coloquei minhas mãos dentro dos bolsos do casaco e entrei como se entra num presídio.

Era um lugar bonito, se querem saber. Apesar de ele morar sozinho, era tudo muito bem organizado e limpo. Cheguei a me perguntar a opção sexual do tal Yuri, aí me lembrei de algumas histórias que o Luis havia me contado sobre ele e retirei a pergunta: ele era só um hétero metódico.

A maioria dos cômodos era branco-gelo com móveis cor tabaco-e-branco. Só um cômodo tinha um azul-marinho bonito nas paredes: o quarto dele, que dava pra ver da sala onde eu estava e pra onde meus amigos se direcionavam agora. E - só então percebi - o lugar era cheio de quadros.

Ainda com as mãos nos bolsos, eu comecei a observar todas elas. Uma parede inteira infestada de quadros. Reconheci o Yuri em todas elas, sempre fazendo caretas e abraçado com diferentes amigos, as vezes com uma senhora sorridente que lembrava muito o Luis e claro, a maioria delas com o próprio Luis.

Click. Ouvi um barulho e só então percebi Yuri parado na porta de entrada, retirando os sapatos com os próprios pés e sorrindo, enquanto trazia uma daquelas câmeras profissionais, observando o resultado do último click. – Espero que você não se importe... - ele tinha uma voz gentil, apesar de rouca. 

Balancei a cabeça, eu também adorava fotografias. Estendi a mão em direção à câmera e ele a colocou ali. Observei a foto que ele havia tirado. O enquadramento perfeito e uma espécie de desfoque em mim e os detalhes nas fotografias da parede. Era a melhor foto que já haviam tirado de mim. Simplesmente perfeita. Sem conter minha empolgação, eu me virei sorrindo pra ele: – Caramba! Ficou ótima. - ele sorriu e abaixou a cabeça, um tanto envergonhado.

Yuri era um cara alto e um tanto magro. Usava óculos de aro muito fino e tinha o cabelo num ondulado meio liso em tom castanho médio de fios finos. Tinha quase 25 anos e trabalhava em um banco ou algo parecido. E parecia gostar mesmo de azul, porque usava uma camisa lisa dessa cor e um jeans escuro. Só então observei minhas próprias vestes e ri. Eu também estava de jeans e azul.

– Você não parecia nada satisfeita no carro... - ele começou a puxar o assunto e eu senti meu sorriso se desfazer como açúcar na água. Imaginei o Renato parado em frente aquela sorveteria me esperando e meu coração começou a se contrair. O Yuri percebeu.

– Não é por sua causa... - tentei me desculpar, mas acho que ele já estava magoado. – E é pelo quê, então? - ele parecia magoado e curioso com um mesmo olhar. – Bem, eu tinha planos pra hoje... Mas, você conhece o Luis. Ele me mandou escolher entre "aquele carinha lá e seus melhores amigos" - fiz aspas no ar e imitei o Luis, ridicularizando o jeito dele. Pra minha surpresa, o Yuri riu. – Isso é mais típico do Luis do que você imagina... - e ele continuou rindo, como se o passado estivesse na nossa frente, mas só ele pudesse ver.

Só então me lembrei de tudo que o Luis já havia me falado sobre ele. Eles eram amigos desde criança e estavam sempre juntos, afinal, eram primos. Apesar de eu ser a melhor amiga do Luis, só havia falado com o Yuri uma vez, pelo telefone do Luis, quando ele ficou internado por ter bebido demais. Lembro que o Yuri começava a rir do nada quando eu perguntava em qual hospital eles estavam. Ele também parecia embriagado. E não parecia nenhum pouco envergonhado como agora.

Luis sempre disse que nós seriamos bons amigos.
Eu - na verdade - tinha ciúmes demais para acreditar nisso.
Só então percebi que talvez o Yuri também tivesse.

Afinal, não devia estar sendo nada fácil pra ele precisar dividir o melhor amigo com um garota que mal chegou na cidade e já tomava todo o tempo dele. E é claro que ele não queria me dizer onde eles estavam na história do hospital porque ele queria cuidar do Luis, como antes ele deve ter feito milhares de vezes, como melhores amigos fazem. Talvez, e eu acreditava que não era apenas um talvez, o Yuri estivesse se sentindo de lado. E agora, aqui estava eu, invadindo a casa dele com os meus amigos que viraram amigos do Luis por proximidade e ainda estava fazendo pouco caso de tudo aquilo. 

De repente, me senti um monstro.

Ele havia parado de rir e ficou me observando perdida em pensamentos. – Se você quiser, eu posso te levar pro seu compromisso. Vai por mim, se você deixar, o Luis começa a comandar sua vida com o ciúmes dele... - e ele sorriu levemente, aquele sorriso de quem sabe o que está dizendo. Fui obrigada a concordar e me forcei a sorrir pra ele.

Procurei na memória todas as histórias que o Luis já havia me contado sobre o Yuri e descobri que eram muitas. Ele estava sempre reclamando sobre como o Yuri era mandão e sarcástico e fechado e dá mania dele de gostar de ficar só e da insônia que ele sempre teve e da mania de tomar café e aquelas piadas sem graça, mas que todo mundo adorava. E ele sempre dizia que nós dois éramos a cópia um do outro. Notei que ele tinha razão.

– Tudo bem com as suas mãos? - eu perguntei gentilmente, fingindo esquecer a oferta dele e lembrando a última história que o Luis havia contado sobre um muro cheio de espinhos protetores que os dois haviam tentado pular numa dessas bebedeiras. Automaticamente o olhar do Yuri caiu sobre seus dedos cheios de band-airs e ele riu, me olhando como se tentasse decifrar tudo que eu sabia sobre ele.

Também me fez pensar sobre o que ele sabia sobre mim, afinal, o Luis era nossa via de mão dupla. Quando ele ia me responder alguma coisa, o próprio Luis apareceu na porta com um sorriso muito satisfeito e um tom de gozação: – Dá pra vocês pararem de namorar e vir logo? O filme já vai começar.

Eu fiquei um tanto vergonha e o Yuri riu. – Vai se fuder, Luis! - o ouvi dizer, tirando as palavras da minha boca. O olhei e ele também me olhou, então sorrimos os dois e andamos até o quarto dele.

Uma TV enorme havia sido ligada, a luz desligada e os créditos do filme já haviam começado iluminando vagamente o quarto. Percebi que todo mundo já havia arrumado um local pra se acomodar nums colchões no chão e o que restava para mim e os outros dois era a cama enorme do Yuri. O Luis já havia se arrumado no último restinho do colchão do chão, ao lado da Karol - quem ele não cansava de paquerar - e eu suspirei pesadamente.

Restava me deitar na mesma cama que o Yuri.
Tem como piorar?!

Ele deitou-se de bruços e abraçou um travesseiro. Ficou me olhando em pé. – Algum problema, Layla? - eu ouvi o Marcos se virar pra mim e olhar curioso. Sorri e balancei a cabeça. Tirei meus sapatos e me deitei na cama o máximo longe do Yuri que eu consegui, o que não foi muita coisa. Ele me passou um dos travesseiros e pegou o outro, enquanto me olhava de um jeito que eu não entendi.

Não sei porquê, mas sempre que vejo a cama de alguém mais velho, fico imaginando quantas pessoas já haviam deitado ali com ele. Não ajudou em nada a me sentir confortável. Eu ainda não havia assistido nada do filme, apesar de olhar pra tela da TV. O Yuri estava comentando alguma cena que ele adorava e todos riram, menos eu.

Isso o fez voltar o olhar pra mim.
Não só o olhar.

Ele se arrastou silenciosamente pra perto de mim até que o seu braço quase tocava o meu. Afundei ainda mais no travesseiro confortável e quis sumir. – Algum problema, Layla? - ele repetiu a pergunta do Marcos bem baixinho, e engraçado como eu quis responder com a verdade para ele. – Não estou realmente com os pensamentos no filme... - disse, com sinceridade e ele pareceu magoado novamente. – Acho que sei onde esses pensamentos estão.

Ele sabia mesmo.

Eu sabia que estava sendo mimada e rude e antipática e todos os adjetivos ruins que o leitor quiser acrescentar, mas veja bem, eu já tinha um compromisso importante com alguém especial ao qual meu melhor amigo odiava. E não era culpa do Yuri. Ele era tão vitima quanto o Renato. O Yuri já havia voltado a atenção pra TV e eu o imitei, mesmo sem realmente ver nada.

– Acho que vou aceitar a tua proposta... - disse, depois de algum tempo, quando finalmente tive coragem. – Tudo bem - ele disse, chateado, mas levantando-se. Assim eu também fiz. Todos se voltaram para nós dois. – Onde é que vocês vão? - o Luis disse em tom de quem-sabia-exatamente-onde-é-que-um-casal-vai-sozinho. – Não suporto mais teu cheiro, Luis, me deu dor de cabeça. Vou pra casa. - disse, rude e esnobe. Ele se encolheu. Ia levar um tempo pra ele me perdoar, eu sabia.

O Yuri pegou as chaves no criado-mudo e nós dois saímos. Quando colocamos o pé na rua, o pai do Luis apareceu sorrindo pra nós dois: – Nossa, eu não sabia que vocês se conheciam, Layla e Yuri... - e ele piscou um dos olhos pra nós dois, como quem compartilhava um segredo. – Ah, não tio... Nós acabamos de nos conhecer. O Luis tá lá dentro... - e, ainda com aquele sorriso de confidencia, o pai do Luis nos viu entrar no carro e sair.

– Depois eu explico direitinho pra ele, ok? - o Yuri tratou logo de se explicar e eu me surpreendi rindo. – Tudo bem, o tio costuma mesmo confundir as coisas. Uma vez ele perguntou se eu era a nova namorada do Luis... - e eu ri denovo. O Yuri também riu. – Acho que nenhuma mulher em sã consciência namoraria o Luis... - ele riu também. – Com certeza! - respondi.

E como eu já estava mais aliviada de estar indo pra casa, me deixei ter uma conversa agradável com o Yuri naquele meio tempo, já que minha casa não ficava nenhum pouco perto da dele. Ainda paramos num posto pra abastecer e o atendente - que era amigo do Yuri - disse algo como 'dessa vez tu acertou em, cara?!' enquanto os dois me observavam dentro do carro. O Yuri não se explicou pra ele, sorriu, pagou e voltou ao carro. Pra completar a nossa piadinha com o atendente, assim que ele entrou, peguei a mão dele e segurei entre os meus dedos, enquanto colocava os pés em cima do porta-luvas.

Duas esquinas depois, eu a soltei e começamos a rir um pro outro.

A conversa soou natural depois disso. Ele me explicou que na verdade não era daquela cidade, assim como eu, mas que havia se mudado pra cá há alguns anos; que aquele maldito banco era um verdadeiro ladrão de sonhos e me perguntou se eu já havia decidido qual curso prestar vestibular, afinal, estava perto.

No final, quando ele parou o carro em frente ao prédio onde eu morava, eu não estava com muita vontade de descer. Um sentimento de culpa e apoderou de mim e procurei um jeito de pedir desculpas por ter estragado tudo. Só encontrei um. Curvei-me até onde o Yuri estava e dei um pequeno beijo na bochecha dele. – Sinto muito ter estragado tudo... - disse, baixinho, apertei os lábios enquanto o olhava me olhando e desci.

Ele acelerou o carro e eu entrei com uma sensação estranha a qual não sabia nomear. Fui direto para o meu quarto, liguei Hey Marseilles e me deitei, olhando o teto, procurando não pensar em coisa alguma, apesar de estar com um cheiro que eu não reconheci em minhas roupas.

Algumas horas depois, fui acordada por um novo sms no meu celular, o cd já havia repetido milhares de vezes e agora tocava ‘Someone to love’, minha preferida. Murmurei a letra enquanto lia o sms de um número não conhecido.

"Roubei seu número do celular do Luis.
No final, o moçinho morre e a moçinha não se declara pra ele.
Ela chora arrependida sozinha em seu quarto.
Achei que você ia querer saber...

Boa noite,
Yuri.

P.S. que tal um sorvete amanhã?
Eu já sei onde você mora. As oito.
O Luis não precisa saber."

13 comentários:

  1. é por isso que eu adoro seu blog, sabe?
    é por essa sensação de leveza que fica depois de terminar de ler um conto seu.
    seus personagens sempre tão bem caracterizados, até sinto que conheço um pouco - ou tento reconhecer nos meus amigos um pouco dos seus personagens.
    e sempre, sempre mesmo, leio o conto ouvindo a música que você sugere. porque tipo, sempre da certo.
    continuaria um enorme comentário, mas vou guardar minhas palavras pros teus outros contos.

    se cuida :*

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  2. Boa historia, gostei de algumas frases e da historia como um todo.

    As vezes não é preciso esperar vários momentos para se tentar algo, apenas uma pequena perspectiva =)

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  3. Sabe o que me dói?! O que houve com o cara que tava esperando ela?!
    Não sei, ela pareceu volátil se preocupando com alguém que estava esperando por ela, estragou uma saída com os amigos, deu um fora feio no Luis e tal.. pra que? Pro cara continuar esperando por ela e ela nem ligar pra dar satisfação e se deixa encantar pelo Yuri..

    O conto é ótimo, a construção, as figuras, as personagens, tudo tudo tudo perfeito.. só a garota do conto que me decepcionou! ^^

    Mas o legal da Ilzy é isso, ela fala das coisas sujas, dos vários tipos de caráter que podemos encontrar ou até mesmo assumir em certas situações como essas...

    Um beijo e PARABÉNS por mais um conto bem sucedido e lindo!

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  4. essa coisa de descompromisso escondido... adorei.

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  5. Adorei o conto. A cada dia vc se supera e me deixa mais encanta . Você não mede palavras , fala com o coração , sei lá , é tudo muito bom . Parabéns , e continue assim . beijo beijo

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  6. Perfeito, mas me deixou com uma sensação de 'quero mais'.. bem que podia ter continuação, né? E ahh, como eu acho que tu já sabe, eu sempre adorei o nome Layla, soa tão bem!

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  7. Maravilhoso o texto! To apaixonada e super deixou com gostinho de 'quero mais'. To seguindo com toda certeza

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  8. LINDO LINDO, AMEI !!

    http://calcinhasreclamam.blogspot.com/

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  9. Cada um dos seus contos me surpreendem, pois sempre têm algo diferente, um toque inesperado..
    Não consigo imaginar um final melhor pra esse conto. Foi perfeito, de novo.

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  10. http://sintatambem.blogspot.com/2011/11/meu-celular-vibrou-em-meu-colo.html O que aconteceu com o cara?! Fiz um conto pra poder ilustrar!!! haha... Beijo pessoal!

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  11. Detesto ser do contra, mas não gostei desse conto. Adoro suas histórias, mas este não me tocou. Achei chatinho. =/

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