Quando o Nós se transformou em dois Eus

16 maio 2011 / Tags: , , , , , , ,

Claramente inspirado em Le parapluie - Yann Tiersen 
Mas, pra ser lido ao som de qualquer uma do Hey Marseilles.
Sugiro "To Travels and Trunks".


Ano após ano, as coisas vão acumulando em minha vida. Fotografias, lembranças e poeira, tudo misturado. Há exatamente dois anos - completos hoje às 5h34 da tarde - desde que ele disse que as coisas não eram mais as mesmas e que era hora de cada um de nós tomarmos um rumo - que por conveniência, não era o mesmo.

Então, ele soltou os meus dedos, não sem antes os beijar e agradecer por todo o amor que nós tínhamos dado um ao outro. Como se todo aquele sentimento fosse um presente; como se eu pudesse me livrar dele como se livra de um casaco velho; como se nada daquilo fosse importante agora. Bem, pra ele não era mesmo.

Dois anos espalhados por todos os lugares onde eu costumava ir. Onde eu costumava comer, viver, rir. Nas músicas, nos livros, nas pessoas e especialmente cravados dentro de mim. Meu cérebro tem um talento incomum pra armazenas apenas as lembranças que poderia esquecer. Acho que tem algum problema comigo.

Porque, eu descobri que talvez o problema dele fosse eu.

Eu e meus milhões de manias estranhas e meu amor gritado; minhas declarações inesperadas, meus presentes sem motivo e meus beijos públicos escandalosos. Minhas unhas vermelhas, meu cabelo ondulado rebelde e todo aquele amor que só é amor puro quando você nunca se decepcionou.

Ele não era nada daquilo.

Então, entendi que nunca houve nada de errado entre nós dois, só não era pra dar certo. Simples assim. Dois imãs podem se manter unidos, mas isso não significa que alguma força maior não possa separá-los. Quando dizem que os opostos se atraem, eles se esquecem de nos avisar que eles também não dão certo.

A vontade dele de ficar, a minha vontade de viver.
Mas, isso já faz dois anos.

Então eu estou andando por uma multidão. É, dessas multidões cheias de pernas apressadas e gente que não te conhece querendo levar seu ombro, talvez pra chorar, talvez pra vender. Dessas multidões as quais eu costumo fazer de mar, que eu costumo abaixar a cabeça ao entrar e fazer de tudo para sair o mais rápido possível atrás de um pouco de oxigênio.

O problema é que já passava das seis da tarde e o céu era escuro como café, como tempestade. Tirei meu guarda-chuva da bolsa e o abri, imitando a multidão que fazia o mesmo. Esperei paciente os primeiros pingos d'água. E quando eles vieram, quis por a língua para fora, registrar o sabor. Mas, havia pessoas ao meu redor e desde que ele se foi, eu tenho tentado ser menos impulsiva, e menos escandalosa, e pintado as unhas de rosa claro, e todas essas coisas que não parecem em nada comigo, que não me fazem ser eu, mas que me integra a multidão.

Foi nessa minha indecisão que eu o vi. Aquela coisa de estar sempre olhando pra frente, então você olha pro lado e vê. Ali parado tão perto de mim que parecia curioso não tê-lo notado antes. Seus ombros estavam curvados e ele segurava a gola da camisa tentando proteger o pescoço pelo menos. A chuva havia aumentado. Ele ainda era alto como eu o conheci.

Quis correr, quis fugir, quis ir lá e lhe matar do modo mais doloroso que eu pudesse. Não fiz nada disso. Senti suor em minhas mãos, senti meu coração pulando pra garganta, me senti encolher. Engoli de novo e decidi: - Carlos? - ele se virou como quem se pergunta como a multidão sabe seu nome. Então me olhou nos olhos. Encolheu mais ainda e sorriu insatisfeito.

Num ato de coragem - ou burrice, não sei - balancei levemente meu guarda-chuva e o convidei ao abrigo. Sem jeito, ele sorriu um pouco mais e caminhou até encostar seu ombro no meu. E nesse toque eu pude sentir todos os outros que ele já havia me dado. Emoções golpeavam meu sangue, meu cérebro, meu coração. Quis empurrá-lo novamente. Tirá-lo de perto, ao mesmo tempo em que quis que - como do outras vezes - ele passasse o braço pesado sobre meu ombro e sorrisse.

O sinal fechou e nós atravessamos a rua junto à multidão. Lembrei que quando caminhávamos, costumávamos ir ao mesmo passo, e isso me deixava feliz, porque havia lido em algum lugar que isso significava sintonia entre pessoas. Quando ele deu o primeiro passo, eu notei que isso havia mudado. Agora ele batia o ombro em mim algumas vezes porque nossos passos não estavam mais em sintonia.

Caminhamos por uma calçada deserta enquanto ele olhava pro chão e eu pras vitrines das lojas do outro lado da rua. Um fingindo que não estava ali, ao lado do outro. Foi assim até o final da rua. Então ele se virou para mim, me olhou nos olhos como fazia quando precisava ir. Eu nunca esqueci aquele olhar.

- Hm... Bem, eu vou ficar por aqui. - ele apontou com o polegar pra um café que ficava do outro lado da rua. Eu estava tentando lembrar em qual braço era mesmo aquele em que ele tatuou uma fênix que eu havia escolhido. - Tudo bem. - eu confirmei baixo demais. - Obrigado pela carona. - e ele me deu um meio sorriso. Assenti com a cabeça. Ele não se mexeu. Deu-me o luxo de olhar pra ele no rosto. Algumas gotas d'água escorriam pelo cabelo dele. Ele havia cortado. E ele parecia tão diferente, e ao mesmo tempo tão igual. E continuo parado, me olhando.

- Talvez você queira tomar um café comigo enquanto a chuva passa... - ele ofereceu, finalmente. Eu quis dizer sim, quis lançar meus braços ao redor dele e dizer por quanto tempo eu havia esperado por ele, como havia sido difícil. Mas, de alguma forma, eu também não queria ir, porque eu sabia que era só um café cheio de "quanto tempo!" "você mudou" "como andam as coisas?" "É, agora eu preciso ir, eu te ligo." "Não, eu te ligo, prometo" e no final ninguém liga, no final volta a ser só passado.

- Não, obrigada... - eu disse por fim e o rosto dele desmoronou em confusão e tormento. Então eu curvei os cantos dos meus lábios pra baixo e dei um passo pra trás. - Bom te ver, Carlos. - e comecei a andar. - Bom te ver também, Clara, até qualquer dia desses... - e ele começou a atravessar a rua.

Fiquei ali, parada, observando os passos dele. Observando a mão de ele abrir a porta e observando quando ele virou de costas e ficou me olhando através do vidro, me esperando correr e ir para os seus braços. Mas, de alguma forma, quando eu o vi atravessar a rua, era como se finalmente tivesse entendido que as coisas ficavam mais em ordem dentro de mim quanto mais afastado ele estivesse.

Com esse pensamento, eu procurei andar o mais rápido que eu pudesse.
Algumas ruas depois, eu finalmente o esqueci.

12 comentários:

  1. Acho que esse foi o melhor conto que eu já li neste blog. Incrível! Você está cada vez melhor Ilzy, parabéns e obrigada por compartilhar seus contos conosco.

    Perfeito! =)

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  2. Seus contos sempre me traz tanta motivação , uma reflexão sem fim.
    Parabéns o conto tá perfeito com todos os outros.

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  3. Nossa, essa última frase "Algumas ruas depois, eu finalmente o esqueci." foi perfeita! Incrivel como esse sumiço do sentimento foi natural! Eu achei magnifico! Parabéns!
    Beijo Dyva!

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  4. Não sei como expressar o quanto eu gostei, mas enfim é... incrível!

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  5. me li inteirinha em cada palavra tua. chame de egoísmo, arrogância ou pretenção: estes teus parágrafos sou eu ♥

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  6. Pior que é assim mesmo.
    Acho que é por isso que após fim de um relacionamento não queremos a pessoa por perto, e mesmo que ela volte é de forma superficial.

    Na verdade a distancia não é raiva por ter dado errado e sim porque realmente queriamos que tivesse dado certo. Ao menos é assim que penso.

    Algumas pessoa com certeza iria aceita o café, aproveitar o ultimo momento, mas porque reviver algo que será morto logo em seguida?

    Enfim, otimas palavras como sempre. Parabens.

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  7. deixar morto o que está morto. :s ta maravilhoso!

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  8. Amei, amei, amei.
    Tem um tom nostálgico e um Q de adeus. Me encantou, mais uma vez :)

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  9. Sempre encantadora, continue assim.


    MEU BLOG : http://calcinhasreclamam.blogspot.com/

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  10. Ainda nao sei como consegue escrever assim, com tanto sentimento em cada palavra. É como se eu fosse uma ali na multidão observando, sentindo.
    Sempre se supera em cada conto.

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  11. Lindo conto! Acho que nunca vou me cansar de dizer que você consegue me emocionar com as suas palavras. :D

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