Escrito ao som de Chet Faker
NEGAÇÃO
O corredor daquela casa estranha parecia um cruzeiro a
naufragar.
A vodca que dançava pelo meu sangue anunciou
brevemente que deveríamos encerrar o ato e caminhar até o fim do corredor mal
iluminado para salvar a mim, para salvar a ela. Já havíamos vencido as
escadarias em espiral, todos os quatro lances.
Agora era só procurar outro copo, outro corpo que
igualmente afundasse como o cruzeiro que cá estamos. Eu, assim como o cruzeiro,
afundava em mim. Naufrago de mim mesma refugiada naquela ilha que não é de ninguém
e nem será. Repúblicas são ilhas onde ninguém está realmente em casa.
Um estranho me esperava no andar de cima. Os locais
onde ele colocava as mãos e os olhos em mim, deslizando facilmente da minha
cintura para baixo pensando que eu não percebia, denunciavam suas intenções. Eu
que nem me importava mais com o coração na parte de fora o deixava dançar pelas
minhas curvas, alcançando montes, deslizando por pontos que notoriamente não
era dele - nem seriam.
Do mesmo modo eu me afastava, dizendo que ele não
teria o que sussurrou em meu ouvido, que fosse sozinho pra um quarto qualquer,
que fosse a merda. Ele me empurrou forte contra a parede depois disso,
deixando-me sozinha, bêbada, louca.
Tudo que consegui fazer foi colar as costas na parede
e deslizar até que meu corpo tomasse o lugar onde meus saltos estavam, onde
parecia seguro. Depois de algum tempo, acabei notando que não adianta tentar
fugir do perigo eminente. O pior náufrago é aquele que sequer admite o apuro em
que está. A pior parte de morrer dentro de si é negar a própria morte.
Naufraguei.
RAIVA
Às vezes, quando teus olhos estão bem distantes dos
meus, gosto de destilar por toda sua nuca, seu pescoço, suas costas, o ódio que
tenho guardado aqui. Por sorte, nunca me olhas nesses momentos tão peculiares,
tão meus. É que assim, te olhando enquanto te odeio, resguardo a mim mesma de
qualquer outro sentimento bom que possa nutrir por ti.
Eu sei que tu respira aqui em baixo, com teus
cigarros, teus livros empoeirados, tua bagunça sem vergonha. Nego-me
terminantemente a descer de novo a tua caverna. Também nego-me a olhar muito
para os lados, num pavor estranho de ti achar pelo cruzeiro, puro pavor de te
ver de braços estendidos pra mim. Engulo do veneno que se forma agora na minha
garganta ansiosa por encontrar agora um rosto conhecido.
Alguém que mal saiba de nós e concorde com tudo de
pior que eu diga a teu respeito, que me faça sentir vitima de tudo isso e não
parte ativa da morte-de-nós-dois como lá no fundo sei que sou. Uma amiga me
encontra, coloca o braço magro no meu ombro enquanto dança a música alta que não
conheço, o cigarro de maconha põe nos meus lábios. Escuta todo o veneno que
cuspo, diz pra ter cuidado que essas coisas matam, que é melhor aproveitar
enquanto pega de volta o cigarro e beija meus lábios pra depois perder-se no mar de gente para pegar outra bebida.
Mergulho também.
BARGANHA
Respiro profundamente enquanto escolho o que beber no
balcão. Era tradição - tudo ali era baseado em tradições - que cada convidado
levasse algo pra beber e deixasse no balcão, assim todos podiam beber o máximo
possível e de tudo um pouco. Na prática isso significava misturar de tudo um
pouco e ficar bêbado mais rápido.
Os copos descartáveis já haviam acabado, então pego um
de vidro sujo e solto pela pia, lavo tranquilamente, ignorando a música,
ignorando os ombros batendo em mim e as risadas altas demais, ignorando todos
aos redor.
E consigo abistrair tudo pra uma das muitas manhãs que
acordei ali, bem depois do meio dia, fui ao banheiro com um rolo de papel
higiênico na mão, vestindo apenas uma camisa dele emprestada e dizendo pra
minha timidez ignorar o fato de morarem outros 39 homens além dele ali.
Depois, colocar o rolo no quarto dele observando-o
dormir de um modo estranho em meio a bagunça, como quem olha um completo
estranho, meio culpada, meio fascinada pela vulnerabilidade de vê-lo em tal
posição. Até que ele acorda e pergunto se esta com fome. Ele sempre estava com
fome. Ofereço-me pra cozinhar. Ele - preguiçoso - sempre aceita.
E corto pimentos, experimento o molho, cozinho o
macarrão e uma carne qualquer enquanto ele fala sobre os seus exs amores, as
transas detalhadas, o poema novo sobre uma delas. Sobre mim nenhum poema,
nenhuma boa historia pra compartilhar. Estar com ele é ter a eterna sensação de
ser plateia dos pensamentos de alguém. Um estranho dentro de um lugar que não
lhe pertence ou não é bem vindo. Como faço sempre que sinto isso, mergulho
dentro de mim mesma estranhamente atenta a todas as palavras dele, sopradas
entre uma tragada e outra na janela.
-... De certa maneira é como se tu fosse apática por
fora. - Percebo no meio da frase que ele falava diretamente comigo agora e
sobre mim, segurando o cigarro com a boca e se aproximando enquanto corto a
carne no balcão, puxando minha cintura na direção da pélvis dele. - Apática por
fora e triste por dentro - conclui enquanto pega meu quadril e começa a dançar,
sem música, nem nada. Dança até eu me sentir bem e rir sem culpa em seu ouvido.
Percebo, por fim, que estava dançando sozinha no meio
da cozinha lotada. Percebo também que de tanto tentar odiá-lo, acabei deixando
bem guardadas todas as risadas, as piadas internas, os bons jantares em
restaurantes chiques demais pra nós dois, as boas bebedeiras juntos e dormir
abraçada e quente nos lençóis dele.
Dá até saudades.
DEPRESSÃO
E dá tanta saudades que desço do salto do meu orgulho,
desço as escadas até a parte mais escura da casa, que carinhosamente apelidei
de caverna, bato três vezes na porta assim sem pensar e espero.
Sento-me nos degraus da escada convencendo a
mim mesma que ele não consegue escutar a porta por conta da música e das vozes
altas demais lá em cima, tentando afastar o fato de que ele pode estar com
outra garota lá dentro ou simplesmente me ignorando. Mando uma mensagem e
espero.
O cara das mãos lascivas me encontra ali nas escadas,
passa ao meu lado e fica me encarando de frente. Pergunta por um banheiro e
aponto o fim do corredor. Ele me puxa pelas mãos tentando me convencer a
segui-lo, a ir com ele.
Apesar dele ter conseguido me colocar de pé, digo
repetidamente que não, mas sinto minha cabeça girando e que preciso de outra
bebida. Meus pulsos doem dentro das mãos nada delicadas dele. Ele começa a
beijar meu pescoço, a falar do meu perfume, a me puxar na direção oposta da
porta, espiar por dentro do meu decote perto o suficiente pra lambê-lo.
A porta finalmente se abre. Meus olhos assustados
encontram os olhos curiosos dele. Peço socorro sem dizer uma palavra. Ele traga
fundo como quem esta cansado de mim e solta a fumaça enquanto prende o cigarro
com os dentes. O cara das mãos lascivas solta meus pulsos e dá um sorriso
nojento pra ele enquanto me vê correndo para me prender dentro do abraço dele.
- Cuida melhor dessa bêbada idiota - diz antes de seguir para o corredor meio
iluminado até o banheiro.
Desprendo-se dos meus braços, segura meu pulso - com
delicadeza dessa vez - me puxando para o quarto e me solta trancando a porta conosco dentro. Em meio a livros, meias sujas, carta de baralho desordenados
e cobrindo o chão inteiro, sinto o cheiro da fumaça de um maço inteiro fumado de
janelas fechadas. Livro-me pateticamente dos saltos, quase caindo. Ele acende
outro cigarro e me olha com pena. Sinto-me um lixo sempre que alguém me lança
um olhar assim, especialmente ele.
Quieta e sem graça, deixo ele me livrar das roupas que
visto. Primeiro o casaco, depois o cropper apertado, depois abaixando-se para
tirar minha saia e finalmente minha meia calça rasgadinha perto da bunda. Está
frio. Ele tira meu sutiã e observa atentamente meu corpo encolher-se de frio
antes de puxar de algum lugar do chão um moletom. Visto derrotada.
Sento-me encolhida abraçando os meus joelhos enquanto
ele vai até o outro lado do quarto, pega o violão empoeirado e senta ao meu
lado. A música da festa é baixa ali, quase como se fosse em outra rua. Ele toca
e canta alto com a voz rouca que tanto me encantava no começo. Choro quietinha
enquanto ele ignora minhas lágrimas, como sempre fez.
Encolho-me chorando e ele continua tocando.
Uma corda lançada no fim ao mar.
Seguro-a.
ACEITAÇÃO
Finalmente sinto a música me animar novamente. Sinto o
sono do álcool e tento espantá-lo. Fico de joelhos na cama, engatinhando na
direção dele. Puxo o violão colocando-o delicadamente do outro lado da cama.
Sento-me no colo dele, um olhar felino rasgando meu rosto. - Tem certeza? - ele
pergunta inseguro.
Beijou-o com vontade. Não demora muito para ele retribuir
com a mesma vontade. Tiro o moletom, ele tira a camisa. Tiro frenética as
calças e cuecas dele. Ele ri enquanto morde meu pescoço e livra-se das minhas
calcinhas. Entra seco, sem amor. Sexo com ele era sempre assim. Bom, mas nunca
tocante. Também acabava assim, gozando seco em minha boca, barriga, coxas.
Sempre que ele acabava, rolava para o lado da cama,
ainda todo suado, e enquanto eu me limpava, ele pegava o telefone e acendia
outro cigarro. Começava uma nova história ou comentava com quem estava
conversando agora. Como se nada tivesse acabado de acontecer. Nenhum abraço,
nenhum carinho depois.
No geral isso me magoava bastante, hoje eu meio que
sentia as lágrimas secas em mim. Sentei-me de frente a ele, vendo-o nu com o
celular na mão cobrindo o rosto do meu campo de visão e finalmente entendi. Ele
nunca seria só meu. Também entendi finalmente que eu não queria mais isso
também. Deitei-me de costa pra ele, puxei a coberta e antes de apagar o ouvi
dizer "Eu te amo", como ele sempre dizia. O jeito dele de garantir a
próxima vez.
Nunca aconteceu de novo.
NOTA DA AUTORA
Caramba, quanto tempo que eu não posto um conto aqui! E esse foi praticamente forçado a sair pelos meus dedos. Comecei a escrever faz uns sete ou oito meses e deixei pra lá. Hoje me deu vontade de terminá-lo. Nem sei se acertei o passo, mas cá está. De coração pra cada um de vocês, um presente de natal atrasado. Ultimamente tenho ideias, mas elas ficam presas dentro de mim, sem querer sair. Então, estou me forçando a fazê-las vir em palavras. Espero que gostem e digam o que acharam nos comentários. Beijão!
ResponderExcluirMuito bom!
Me fez recordar de quando me refugiava em certas cavernas.
Saudades dos teus escritos, eles de fato são um presente para quem os lê.
Feliz 2016, com mais luz e menos cavernas.
Todos temos as nossas cavernas, não é mesmo Emilia?
ExcluirMeu presente foi ler esse comentário tão lindo! Muito obrigada, de coração mesmo, por isso <3
Feliz 2016 pra ti também! Cheio de luz e realizações e menos cavernas hahahah
Beijão!