Meios-dias feios

11 janeiro 2015 / Tags:


Pra ouvir: Vagalumes Cegos - Cícero

"Vagalumes cegos emperrados entre o meio e o fim."

Já era a terceira xícara que seus dedos abraçavam. 
Primeiro seu café. Depois o chá que havia pedido pra ele. 
Então, outro café. 

Esse era o último, jurara para si mesma observando sem cansar a porta do local. Sentia o olhar do garçom - único cúmplice - lhe atingir em cheio pela costas. Os dois esperavam já sem paciência. 

Passava das três da tarde e ela sabia que deveria ter ido embora há pelo menos duas horas atrás, mas não conseguiu. Pensou, primeiro, que era normal atrasar alguma vez, uma veizinha só. Mas, ele nunca atrasava. Talvez o trânsito? É, podia ser. Talvez um problema no carro, na vida, na data. Olhou novamente o relógio no celular. Data cerca, hora errada. 

Encontraram-se assim quase que por acaso da primeira vez. Ela pedia um café forte e ele um chá amargo. Sentaram-se na mesma mesa. Gostaram da casualidade daquilo. Tornaram tradição. Uma vez por ano, na mesma mesa, no mesmo pequeno restaurante à meia luz. Nunca comiam nada, embora fosse hora de almoçar. 

O roteiro de perguntas eram tão conhecido nos últimos cinco anos que já nem precisavam fazê-las. Apenas ficavam ali aninhando a xícara quente entre os dedos, enrolando um ou dois cachos do próprios cabelo e encarando as palavras do outro numa avalanche contida, esperando para derramar a sua. Cada um era o segredo do outro. 

Uma vida inteira construída ao redor dos 364 dias além daquele. Uma vida inteira esperando para ser contada ali. Ela, que no primeiro ano só falava da confusão sobre o último ano da faculdade e de como desejava a vida boêmia em outro país. Agora, no último, só falava do marido e dos gêmeos pequenos e suas pequenas conquistas diárias. Naquele ano havia reservado uma história divertidíssima sobre o primeiro passo da menina e como o irmão tentou acompanhá-la, fracassando terrivelmente e puxando-a consigo rumo ao chão.  

Ele, pelo contrário, que tanto desejou casar-se com a namorada de anos atrás e estava com tudo planejado, acabara com um emprego de gerência numa indústria da região. Nunca casara, nem sequer conseguira os filhos sonhados desde sempre. Hoje já nem pensava neles. Dizia que os filhos eram os funcionários que cresceram sem limites e ele era obrigado a limitar. 

E logo após a atualização, os dois punham-se a sonhar em conjunto. A recordar os três anos de uma espécie de namoro anterior àqueles encontros e, também, os planos frustrados pelos desejos divergentes de cada um. Brincavam de estar vivendo a vida dos sonhos do outro. Até que ele, com os olhos esperançosos dizia que o sonho dele era ela e sempre foi. Ela corava toda vez. Ele, então abraçava os dedos quentes dela, dizendo que ainda a esperava. 



Sonhavam junto com a vida que poderiam ter, que poderiam começar hoje, mas nunca de fato começavam. Ela amava o marido, os filhos, o emprego. Ele a amava e aquele dia lhe bastava. Até tentou com outras mulheres, mas sempre deixava claro que ela era sua preferida. 

A mulher considerava, toda vez, se aqueles encontros à meia luz nesses meios dias sujos que reservava só pra si eram uma espécie de traição ao marido. Concluíra que não, pois ele nunca encostava nela nada além das mãos. Ela sentia falta do sexo raivoso e urgente com o homem, mas não trocava a calmaria e o carinho do marido. Uma vez, lhe alertaram que você nunca casa com o amor da sua vida, porque ele bagunça tudo e nunca dá certo. Você casa com o amor que lhe faz bem. Ela sabia que havia escolhido certo, mas, mesmo assim, não conseguia deixar aquele dia com o homem para trás. 

Perdida ali em pensando, finalmente viu-o entrar e ser cortado pela luz da rua. Já era noite dentro do bar quando ele apareceu. Era noite dentro dela, apesar de não passar das três da tarde. Ela percebeu de imediato que algo havia mudado.

No lugar do terno costumeiro, ele usava um moleton confortável. Deixara o cabelo crescer do corte social-e-com-gel que cultivou nos últimos anos. Entrou vestindo também um sorriso que ela só costumava ver quando tratava de roubá-lo. Sentou-se a vontade, sem a postura séria que ela tanto amava. - Dessa vez eu começo. Tenho tanto a dizer, querida - ela apenas abraçou a xícara já fria e observou-o falar. 

O garçom trouxe o chá matte bem amargo que ele sempre pedia e trocou um olhar de cumplicidade com a mulher quando o homem recusou e disse-lhe que havia parado com a cafeína. Preferia um suco de laranja bem gelado. 

Contou-lhe então da moça. Conhecera-a assim que a mulher havia saído no último ano. Ele demorou-se mais um pouco e quando estava de saída esbarrou nela. Assim, como nos filmes, esbarrou derramando o café para viagem na roupa dela. Ofereceu-lhe um novo, um lenço e por fim, outro café no dia seguinte. 

Encontraram-se ali outras três vezes antes de ter coragem de convidá-la para um encontro decente. Um jantar, que trouxe-lhe um beijo, que tornou-se um namoro, que tornou-se noivado na semana anterior aquela e que estava na casa dela quando perdeu a hora de estar ali, agora. Pediu desculpas. Contou também como ela lembrava a própria mulher que estava ali, quando eles de fato namoravam. Porém, ela também sonhara com os filhos que ele havia voltado a querer. Haviam planejado três. A moça já a conhecia bem e a adorava. 

- E isso me leva a pedi-la para ser nossa madrinha de casamento, junto com seu marido, é claro - ele disse sorrindo de orelha a orelha e pegando as mãos delas nas suas como fez tantas vezes. 

Os olhos da mulher entregaram-na. Estava atônica, totalmente perdida. Só conseguia pensar que não era mais sua favorita. Pensar em todas as vezes que desejara que ele não fosse mais depressivo, que arrumasse alguém que o fizesse feliz como ela tinha certeza que faria caso largasse o marido para ficar com ele. Amaldiçoou cada uma dessas vezes. Um ciúmes estanho percorreu-lhe o sangue, a alma, a dor.

Observou-o sorrindo a sua frente esperando uma resposta e não reconheceu aquele estranho. Não encontrou mais espaço para ela e sua outra vida na nova vida dele. Recolheu suas mãos de volta para perto de si, levantou-se pedindo desculpas por não poder aceitar, desejando falsamente toda a felicidade do mundo para os dois.

Ele observou-a pegar a bolsa. 
Deixar o dinheiro da conta na mesa e caminhar para a rua. 
Nunca mais a viu.    


"Ninguém vai dizer que foi por amor. Todos vão chamar de derrota."

8 comentários:

  1. Ahhhhh eu estava com saudade desse sentimento que só tenho quando leio os seus contos... Adorei esse! :)

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    1. Bia <3
      Eu tbm tava com saudades dessa sensaçãozinha gostosa que é um conto que ja vem pronto na minha cabeça só pra escorrer pelos meus dedos. Acho que essa aura boa envolve todos nós. Obrigada pelo carinho *-*
      Beijão!

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  2. O começo me lembrou do livro "Um dia". Excelente conto.

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    1. Jura, Jéssica? Tenho muito vontade de ler. Já está no meu kindle.
      Obrigada pelo elogio.
      Bjs!

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  3. Que conto lindooo! Amei!!! Você escreve muito bem!

    Bjos

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  4. Ai que saudades dos seus contos! Você sempre consegue me prender na história, sério, é tão bom de ler assim.. Aparece com mais deles por aqui vai

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    1. Ang, esse ano parece que minha inspiração acordou de novo. Acho que vem mais coisa boa por aí sim! Muito obrigada pelo carinho viu? <3
      Bjão!

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