Ao (meu) Lado

01 agosto 2011 /



Dedicado à M.F.,
por ter dividido os fones e algumas palavras comigo
naquela viagem.


- É que às seis da tarde com o sol se pondo me lembro dos teus olhos e sinto vontade de te ouvir dizendo que não-(me)-ama-com-medo-de-perder; soava poético, mas não o tipo da coisa que sairia da minha boca. Não na frente dele, pelo menos. O telefone repousava no meu colo como um gato de estimação preguiçoso enquanto eu ficava tentando não lembrar aquilo que também não conseguia esquecer.

Porque quando se viaja com a família as boas expectativas tendem a zerar.

Então, vesti o primeiro short que veio à mão e repeti o processo com os demais trajes. E não me surpreendi de saber que quando chegasse a rodoviária, a família - que era enorme - já teria ocupado todo o ônibus e me enxotara para outro, com o mesmo destino, mas repleto de desconhecidos. Eu não tinha certeza qual das duas opções era a pior.

Minha mãe me devia uma por me oferecer pra ir no lugar dela.

Depois de comprar minha passagem, esperei no último lugar da fila dos passageiros que embarcavam e consequentemente não pude sequer escolher o lugar onde me sentaria. Só me restava um, quase no meio do ônibus e ao lado de um rapaz que já havia sentado ao lado da janela.

Droga, eu sempre fico do lado da janela...

Enquanto meus pés estavam ligados no automático, meu rosto de repente foi ficando vermelho e minha cabeça cada vez mais baixa. Quando me sentei, tudo que consegui ver dele foi a perna. Tratei logo de por minha bolsa sob minhas pernas e cruzar os braços, tentando o máximo possível me proteger de alguma coisa que eu não fazia idéia do que era, mas que colocava meus olhos cada vez mais baixos e me forçava a olhar pra qualquer lado, exceto aquele onde ele estava.

É tão estranho sentar do lado que não era o da janela, pensei, enquanto o ônibus começava a andar... Do outro lado pelo menos eu teria a desculpa de olhar pro lado a viagem toda e não precisar falar com ninguém.

Tratei de por meus olhos no relógio digital que marcava 13h05 e suspirei. Ainda me restavam cinco horas de estrada. Pensei desesperadamente em coisas que poderia fazer e nada me veio a mente, exceto um toque suave no meu ombro. Permiti-me uma pequena espiadela pro lado quando notei que o rapaz estava olhando pra janela.

Nós dois estávamos na mesma posição. Os braços cruzados na cintura, as pernas soltas após os joelhos tensos e uma expressão de quem tentava se proteger de algo que não sabia o que era, mas que também não se permitia olhar pro lado. A única parte dele que me tocava era o ombro e eu não sei, mas não pude afastar. Era confortável.

Permanecemos na mesma posição por uma eternidade que o relógio se esqueceu de contar. Vi que ele tinha uns braços bonitos, e umas pernas bonitas e adorava a textura da camisa dele que roçava suave no meu braço nu quando o ônibus fazia curvas pra direita. Eu queria muito ver os olhos dele, o rosto dele, mas não tive coragem, então simplesmente me coloquei a imaginar.

Quando notei, já tinha imaginado tudo sobre ele, sendo profundamente franca comigo mesma e deixando um pouco de lado a sonhadora que costumava ser. Pensei em que comidas ele poderia gostar, em que música estava sendo tocada nos fones de ouvido dele, em quantos anos ele poderia ter, em que estudava, pra onde estava indo...

Só parei quando senti que ele havia descruzado os braços. O ônibus havia feito uma parada e todos estavam descendo. Levantei os olhos sem querer e acabei encontrando os dele. Na hora, eu não soube descrever que cor eram, só sei que eles me fizeram querer saber ainda mais sobre ele, mesmo que o ainda-mais fosse tudo, já que dele eu não sabia nem o nome, só que gostava dos joelhos, da camisa macia e do modo como ele pediu licença sem precisar falar...

Deixe-me observá-lo caminhar pelo corredor do ônibus. Ele era alto e tinha uns costas largas bonitas e um jeito airoso de caminhar como que tem preguiça, mas vai mesmo assim. Percebi que estava com uma combinação linda de short caqui creme e camisa vermelha fosco daquele pano que eu não sabia o nome, mas gostava muito.

Mordi meu lábio e senti o quão ele estava ressecado. Tirei um gloss da bolsa e apliquei sem espelho, torcendo para ele não voltar antes de eu puder guardá-lo. Também peguei um chicle e comecei a mastigar enquanto continuava bolando teorias de quem ele era, pra onde ia, porque tinha o braço tão macio.

Todos começaram a embarcar novamente e pra mim ele parecia uma chama no meio de uma escuridão. Um brilho denso de quem interessa. Era o mais alto de todos e estava vindo para o meu lado, mesmo que forçado. Dei passagem para ele novamente e o vi sorrir.

Ele usava aparelho nos dentes e estava com a barba por fazer. Se ele brilhava denso, o sorriso brilhava suave e pálido, em meio às borrachinhas azuis. E tudo que eu consegui pensar por um tempo foi que aquele tom de azul era minha cor preferida e se não fosse, passaria a ser. 

- Aceita? - ouvi a voz dele, baixa, suave e macia, como o braço dele, vindo em minha direção. A mão estendida vagamente pairando sobre meus joelhos me apontando um maço de chicletes. Sorri e neguei com a cabeça do modo mais gentil que consegui. Ele sorriu meio envergonhado e novamente se virou pra janela concentrado.

Pôr do sol. Foi o que me veio à cabeça assim que imaginei os olhos dele refletindo o susto dos meus de finalmente tê-los visto. Ele tinha olhos da cor do pôr-do-sol. Precisei controlar um sorriso de satisfação quando me dei conta disso. Acho que ele notou.

Então o sol bateu no meu rosto e ele puxou a cortininha, me dando um sorrisinho de brinde. E todo o ônibus fez o mesmo com suas cortininhas e parecia que uma densa nuvem de sono se apoderou do local. O ar condicionado parecia mais frio e os meus olhos queriam fechar, mas eu não conseguia não pensar nele ali do meu lado e no modo como me deveria me achar estranha dormindo.

Só então espirei novamente os olhos dele e os vi fechando. Cruzei minhas pernas e a minha panturrilha encostou-se à perna dele. Não a tirei dali. Espiei-o fechar os olhos e procurar um jeito não-doloroso de dormir, sem encontrar. Acabei me permitindo fechar os olhos também, mas não dormir, eu só conseguia pensar em qualquer coisa que eu pudesse dizer que o faria sorrir novamente pra mim, com aquelas borrachinhas azuis e aquela calma boba de quem sorri por vontade e não por educação.

Acabei cochilando um pouco e quando abri os olhos denovo, percebi que ele estava com o corpo virado para o lado onde o meu corpo estava virado e era como se ele estivesse dormido enquanto me olhava e eu feito o mesmo. Precisei controlar outro sorriso.

Quando nós dois acordamos, ele abriu a cortina novamente e eu me permiti olhar a paisagem verde correndo pela janela, enquanto pensava mais sobre ele e me deixava espirar os olhos dele refletindo o céu, e as arvores correndo e alguma coisa como pensamentos tortos numa ruga acima do nariz.

- Então... - a voz dele era baixa, e sempre vinha em minha direção em marcha lenta. - Vai pro porto? - ele parecia interessado quando se virou, só não tive certeza no que: em mim, ou em puxar conversa, ou nós dois. - Sim... - respondi baixinho e precisei repetir já que ele fez uma careta suave de quem não havia entendido.

E ele começou a me perguntar sobre o porto, e eu falei sobre os meus avos e sobre como eu adorava ver o sol mergulhando fundo no oceano pra não voltar tão cedo sentada nas mesinhas redondas e do gosto da água de coco na garganta. Ele perguntou se eu iria pra festa das barcas, e eu contei que sempre construía uma com os meus irmãos e o meu pai, e ele disse que também fazia isso com uns amigos, e eu falei dos meus amigos do porto, dos meus amigos da capital, e do que eu mais gostava dos meus  amigos e ele riu e perguntou se já era meu amigo e eu também ri porque não sabia o que responder. Eu não tinha certeza se o queria como amigo...

Só então notei que ele já sabia milhares de detalhes sobre mim e eu sequer havia perguntado o nome dele. Senti-me uma chata monopolizadora de conversa e resolvi me calar. Ele notou, deu só mais um risinho e só me perguntou meu nome. Respondi Clara e ele Vítor.

Voltamos nossos olhares pra janela assim como num armistício, e voltamos a um silêncio gentil como ele e meio envergonhado como eu. Alguns minutos depois ele encostou o cotovelo na minha cintura e me mostrou o pôr do sol bonito num enorme vale de montanhas por onde passamos, então me contou que ele sempre sonhou em comprar um sítio perto do porto e viver por lá, e eu contei que sempre fui meio urbana e tinha pavor de sapos, também contei sobre meu pavor e agulha e ele me contou que bastava segurar a mão de alguém e não doía tanto assim, e eu disse que ia chamar ele da próxima vez que fosse tomar algum soro...

E todas as vezes que me calava, ele dava um jeito de me fazer começar a falar novamente, e o sol foi dormindo no horizonte e os olhos dele pareciam ainda mais gentis quando brilhavam fraquinhos em direção ao meu monólogo sobre mim, sobre o que eu gostava, sobre o porto e sobre como eu ficava entediada de não ter companhia e eu tinha a sensação de que se me calasse, e colocasse minha cabeça no meu banco ali onde ele recostava a dele no banco dele, nós íamos começar a falar cada vez mais baixo, e mais baixo, então íamos ficar cada vez mais perto e... E... Então me calei.

E ele fez exatamente como eu tinha imaginando. Foi falando baixinho, então deixou de falar e colocou a mão na minha bochecha que me dava a sensação de estar queimando, e ele sorria com aqueles olhos gentil, aquela mão gentil, aquele olhar gentil e quando vi não podia mais controlar aquela vontade gritante, latente, pulsante de chegar mais e mais e mais perto.

Finalmente estávamos perto o suficiente, olhei pela última vez pro sorriso dele e fechei os olhos. Antes de me beijar, ele encostou suavemente o nariz algumas vezes no meu. Depois procurou minha boca com uma culpa-sem-desculpas e finalmente me beijou.

Antes, cheguei a pensar que ninguém poderia ser tão bom assim, e acabei concluindo que ele beijava mal, mas ele me surpreendeu ainda mais com a suavidade que os lábios dele buscavam o meu, mesmo que parecessem famintos algumas vezes.

E ele cruzou os dedos aos meus, e sorriu satisfeito e mais bonito ainda, mesmo naquela luz tão baixa. Levou nossos dedos até minha bochecha vermelha e fez carinho ali e eu agradeci pelo sol já ter ido dormir e ele não poder ver direito meu sorriso bobo e minha vontade de beijá-lo cada vez mais.

Então, no meio de outro daqueles mil e um beijos, notei que as luzes foram acessas e o ônibus havia parado. Nós havíamos chegado ao porto.

Pela primeira vez desejei que aquela estrada fosse só um pouco mais longa, só pra poder ficar mais um tempo com ele, de mãos dadas, me sentindo amada-mesmo-sabendo-que-não. Levantamos e enquanto caminhávamos pelo corredor, ele pegou minha mão e cruzou os dedos aos meus novamente. Sorri, apenas da sensação terrível que a cada passo me afastava mais de tê-lo ali.

- Preciso do número do seu celular pra poder te pegar pra festa das barcas... - ele disse na altura do meu ouvido e eu soletrei o número sorrindo. Ele salvou no celular dele e quando nós descemos do ônibus, parecíamos um daqueles casais com 200 anos de namoro. Ele pegou as minhas malas e as dele e sorriu, perguntando se poderíamos dividir o taxi...

Só então notei meu irmão mais velho vindo em minha direção.

Ele não era do tipo ciumento, mas também nunca foi muito compreensivo com os meus namorados... Mas, ele não veio falar comigo, falou com o Vitor. Cumprimentaram-se como amigos que não se viam a muito tempo e o Vitor passou uma das minhas malas pro meu irmão.

- Vejo que vocês já se conheceram, não é? - e eu vi o meu irmão e um Vitor meio que desentendido me olhando. - Já sim... - respondi calma e sorrindo. - Então, primo, a pirralha te deu muito trabalho? Ah, esquece! Vamo ali pra eu mostrar o parente novo pra família, boa sorte, eles vão querer te devorar... - e meu irmão saiu puxando um Vitor ainda mais confuso que eu, em direção à minha família.



Se você for caminhar sobre as águas,
certifique-se de usar sapatos confortáveis.

10 comentários:

  1. Aqui fica cada dia mais lindo hein ilzy ?! Amo seu blog .
    Por : @AmandaWestwick ;D

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  2. primos desconhecidos numa viagem ao interior. muito bom! ;D

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  3. Ameeei explendido, gosteei demais desse conto, vai para os preferidos ;]

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  4. Nossa! Amei esse! ;)
    Como sempre lindo!
    Parabéns!

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  5. Minha mente não para de produzir uma possível sequência dessa história, Zee. Como os outros contos, este é simplesmente lindo.

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  6. Aaaaaaaaaaaaaaaaaa...que coisa perfeeeita! Ah, Novalee Lavender, ela é malvada e nunca vai contar o fim da história! Por isso eu faço fanfics! kakakakakakakakakaka

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  7. Ilzy, que texto.. assim.. eu nem sei nem dizer o que ele me passou.. sério! Deu aquele friozinho na barriga no final, muito sei lá, dos seus textos mesmo, sem finais que eu adoro haha
    beijos.

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  8. Como vc consegue fazer uma coisa tão simples ficar tão perfeita? :3

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  9. Lindo, lindo, lindo! *---* Esse conto foi pra lista dos meus favoritos! :D

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