Uma rua (quase) conhecida, uma menina (quase) bem vinda

02 fevereiro 2011 / Tags: , , ,



Uma figura muito estranha caminhava pelas calçadas de Londres.
Era iluminada pelos primeiros raios da manhã, e não parecia nem um pouco com as pessoas que passavam por ela na rua, vestidas com seus ternos e maletas, prontas para mais um dia de trabalho. Era ignorada pela maioria destas pessoas e gosta disso.

Era uma menina, podia-se perceber.
Vestia uma camiseta preta com uma blusa cinza de mangas curtas por baixo. Um jeans muito surrado e rasgado cobria a parte traseira dos tênis all-star também muito gastos. Todas as peças estavam imundas, tal como ela mesma. O cabelo castanho estava preso num rabo-de-cavalo frouxo e um saco de vagens preto nas costas.

Seus passos eram lentos e airosos.
Ela não parecia estar muito ciente do mundo ao seu redor, e realmente não estava. Caminhava com a cabeça levemente levantada, as mãos nos bolsos da frente do jeans e apenas um objetivo em mente: chegar em casa. Aliás, ela poderia chamar aquele lugar de casa? Não. Ela jamais poderia chamar lugar algum de casa.

Não demorou muito para encontrar.
Ficava numa rua vagamente conhecida, próxima ao centro. Era uma casa bonita, tipicamente inglesa, com suas janelas quadradas e porta de madeira trabalhada. Tinha a fachada pintada de azul-acinzentado e as bordas brancas. Uma árvore feiosa ficava quase de frente à janela da sala de estar. Havia um gramado há muito não cortado.

Um suspiro pesado escapou por entre seus lábios. Home.
Ela caminhou por uma pequena estradinha de pedras até encontrar a porta de entrada. Não sabia ao certo qual das chaves daquele grande maço era a da entrada e apressou-se para descobrir, quase arrombando a porta.

Um visinho bateu a porta ao lado.
Ainda estava de pijamas e meias, e tinha um rosto redondo e corado. Observou-a por alguns instantes, em especial suas vestes completamente imundas. Franziu o cenho, numa mescla de surpresa e medo. Aquele era um bairro conhecido pelas redondezas, abrigava famílias de boa índole, em maioria idosa. Aquela decididamente não era uma figura que costumava passear pela rua, aliás, era exatamente daquele jeito que os moradores do bairro julgavam ser os sem-abrigo.

Ele esticou seu pescoço o máximo que pode. Queria ver melhor.
Espirava por cima da cerca branca. Havia muito tempo que ninguém ia aquela casa. Pertencia a uma família respeitada naquela região, os Rowan. Desde que o Senhor Rowan morreu, raramente a casa era visitada pelas herdeiras, a Senhora Rowan e uma menininha muito bonita da qual ele não lembrava o nome.

- O que pensa que está fazendo?
Ele indagou em voz alta para que ela não pudesse fingir não ter escutado. Certamente era uma andarilha sem abrigo que estava invadindo aquela casa, ele nunca deixaria aquilo acontecer, pois sempre fora amigo dos Rowan, em especial do falecido. A figura parou por um instante, hesitante. Virou a cabeça lentamente por cima do ombro esquerdo, até encontrar os olhos do visinho. Seus olhos eram fogo e ódio. Sua voz era cansaço e aspereza - Estou voltando para casa, Sir Hudson. Disse balançando o maço de chaves e abrindo a porta. Fechou-a atrás de si.

...

Quando entrou, a porta rangeu alto.
Numa primeira visão, observou a longa escada curva, uma sala a direita que era usada como sala de estar, onde ficava a lareira e outra sala - à esquerda - ocupada por uma longa mesa de jantar. O cheio de mofo impregnava o local.

Ela sentiu um dejavú diferente.
Podia ver uma menina pequena de cabelos ondulados e castanhos entrando pela porta onde estava, segurando a mão de uma mulher bonita e alta. Ambas sorriam, o sol estava bem em seus calcanhares. A mulher fechou a porta, a menina correu para a sala da lareira.

Os olhos de Lisbeth encheram-se, há ponto de transbordarem.
Ela levou uma das mãos à boca e mordeu a lateral com fervor. As lágrimas pouco a pouco cessaram e ela já podia ver novamente. Era estranho, aquela cena fora exatamente a última vez em que esteve naquela casa, seis anos atrás, no dia em que compraria seu material escolar.

Caminhou vagarosamente até à lareira.
Havia uma fileira de fotografia ali, todas dispostas numa espécie de linha do tempo. Primeiro a de um casal vestido como numa ocasião de casamento. Havia uma mulher sorrindo tristonha e um homem sério de terno e gravata vermelha. Era a única foto do homem. As outras, eram fotos de uma criança que Lisbeth reconheceu como ela mesma.

Havia dezoito porta-retratos ao todo.
Em cinco deles não havia fotos.
Era quase uma tradição para a mãe de Lisbeth, que todos os anos houvesse uma nova foto da menina. As primeiras eram bem espontâneas e não economizavam em matéria de sorrisos. Depois foram decaindo, decaindo. Lisbeth lembrava perfeitamente que recusar tirar a foto que indicaria seus 13 anos. A partir daí todos os porta-retratos estavam vazios.

Seus olhos brilharam com a lembrança.
Ela correu o dedo vagarosamente pela estrutura que sustentava os porta-retratos. Uma densa poeira se acumulava ali, como no resto da casa. De repente fora cortava por uma pequena gota d'água. Lisbeth recostou o braço na parede fria de tijolos e recostou a cabeça no braço. Soluçou por uma grande coleção de minutos, depois da primeira lágrima. Permaneceu ali até que as forças de suas pernas cessassem e ela caísse lentamente, de joelhos, de frente à lareira apagada.

Perder a mãe era o fim do mundo.
Mas, ela precisava seguir em frente.
Mesmo que tudo parecesse perda de tempo.

NOTA DA AUTORA; esse conto na verdade era o princípio da história de uma antiga personagem de RPG.

6 comentários:

  1. céus. conseguiste juntar uma combinação perfeita de elementos; londres, perda, nostalgia, saudade...

    está indubitavelmente perfeito.

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  2. Lisbeth!

    Ai ai, sempre que lembro de personagens de RPG não consigo não pensar que as coisas ficaram incompletas. Ah,os olhos dourados da garota Rowan *-*

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  3. Oh muito bom mesmo!

    Mas naquela parte "...Um suspiro pesado escapou por entre seus lábios. Home." No caso home não deveria vir em itálico pra indicar que é uma palavra estrangeira? Ou seria outra palavra que eu não entendi?

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  4. Que triste! Não sei porquê, mas esse conto me fez lembrar da Lisbeth Salander da trilogia Millennium...

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