4:10 AM

28 outubro 2010 / Tags:


Piscar de olhos.

Os dias que antecedem as chuvas sempre parecem mais quentes. Naquele exato momento, o sol brilhava solitário no imenso céu. Afastava as nuvens, o azul e qualquer outro que ousasse ameaçar sua hegemonia (não que alguém estivesse tentando, é claro).

A maioria das pessoas procurava incessante uma sombra, mesmo aquelas compridas dos postes de iluminação. Uma boa idéia pareceu pairar sobre a cidade: o domingo fora reservado para piqueniques no parque municipal. Na verdade, aquilo não era bem um parque, era só um enclave de uma vegetação que já fora característica da região, mas que agora dava lugar aos imensos prédios cinzentos e à poluição que deixava o sol uma laranja fulmegante se pondo no fim da tarde. Ele caminhava por uma estrada de pedras dentro do parque.

Piscar de olhos novamente.

Como ele fora parar ali mesmo? Talvez tenha sido acometido pela idéia de domingo... Não sabia, só sabia que lá estava caminhando por uma estradinha de pedras tortuosas entre as árvores grandes de galhos e troncos retorcidos e de folhas quase acicufoliadas, tão pequenas e finas que de longe lembravam leves pinceladas de um bom pintor das margens do Sena. Daqueles de muito talento, mas pouco conhecidos.

Uma grama verde-limão cobria o chão ao longo dos imensos canteiros. Olhando de longe, ela deveria coçar bastante (imagine sentar-se por lá!). Uma ou outra árvore cortava os gramados. Mas apenas uma dentre todas as outras parecia chamativa, era a maior e a mais verde, consequentemente à mais sombreada. Ele sorriu para ela e ela sorriu novamente.

Uma ruga entre os olhos.

Não, a árvore não sorriu, mas sim uma menina. Aliás, ele a conhecia de algum lugar, só não conseguia lembrar de onde (e se ela estava sorrindo chamativa, com certeza o conhecia). Os dedos finos da menina se estenderam no ar, pareciam chamá-lo para lhe fazer companhia. Ele caminhou pela grama sem importar-se agora se coçava ou não.

Quando alcançou o local, pode ver a menina sentada no chão, ainda sorrindo e o observando de baixo com as longas palpebras piscando delicadas, retirando a franja dos olhos para que ela o pudesse ver melhor. Naquele exato momento uma brisa levou os cabelos lisos, negros e curtos dela para trás. Ela também congelou o rosto do rapaz no instante. Ele a conhecia... Mas não com aqueles trajes.

A maioria das pessoas diria que Jasmin era uma pessoa excêntrica e todos os adjetivos que caracterizam as pessoas que não se adaptam à normalidade mórbida das cidades do interior, mas, até mesmo Jack - que sempre considerou aquilo muito mais uma qualidade que um defeito - tinha uma limite. Que diabos ela estava fazendo com um vestido de gala branco, espartilho e bordados no meio do parque, naquele calor?

Engraçado como ninguém parecia notar o quão aquilo era estranho.
Apenas ele.

Mesmo assim, ele tentou sorrir naturalmente. Só então percebeu o desencadear das coisas: suas mãos dentro dos bolsos do jeans estavam pingando de suor. Pela nuca corria uma única gota em direção suas costas e descendo. O coração estava acelerado e a respiração entrecortada e claro ele não parava de balançar-se para frente e para trás em cima dos próprios pés. Ele conseguiria dizer "Oi"? Não, não parecia encontrar a voz. Melhor ficar calado.

Porque ele nunca conseguia falar quando ela estava por perto?
Não esqueça de piscar os olhos, Jack!

Só entao ela revelou suas intensões. "Toque, por favor", disse em voz de sinos ao vento, mas num tom que mais parecia dentro da mente do rapaz que uma voz externa. Aliás, as pessoas não deveriam mecher a boca quando falam?! Ele estava lendo os pensamentos dela agora?!

Muito estranho.
Contudo, ele não procurou atentar-se aquilo.
Não ainda.

Uma pedido dela era quase um ultimato para ele. Imediatavamente ele pode sentir um peso conhecido em suas costas. Observou as alças da bolsa do violão que carregava e só então percebeu que ele estava ali. Sorriu como quem concente e sentou-se na grama próximo à ela. Pode vê-la sentar-se mais perto ainda e gostou.

Pegou o violão entre seus dedos, não antes de observá-lo um pouco mais ainda protegido pela bolsa. Como alguma coisa poderia ser mais encantadora que aquele instrumento? As cordas alinhadas, a madeira clara e oca, o som... Ah, o som! Se algo pudesse ser mais apaixonante que aquilo ele duvidará se um dia o conheceria.

Então olhou para frente e discordou imediatamente do pensamento anterior.

Agora lhe bastava colocá-lo no colo, colocar a mão esquerda onde seus dedos dançariam conforme as notas e a mão esquerda em meio à um abraço ao instrumento e simplismente fechar os olhos. A música era algo que saía dos seus dedos como o CO² sai dos pulmões: naturalmente, involutariamente, vitalmente.  À medida que as notas pediram, ele também conseguiu encontrar a voz perdida em algum lugar da laringe e pois-se a cantar.

Ele ainda arriscou espiá-la por alguns momentos com um dos olhos nela, o olho na música. Ela parecia absorver as notas com as mãos e abraçá-las, sorrindo de olhos fechados. Ele sorriu ante aquilo e continuo tocando por muito tempo.

Até sentir um jato quente e delicado de ar próximo ao seu nariz.

Quando parou de tocar e abriu os olhos, observou dois grandes olhos castanhos próximos demais. Levou um susto, mas não ousou mecher um músculo. Ela o observava de perto e ele tinha certeza de que poderia ver sua alma dali. E se isso fosse verdade, ela também poderia ver o desejo gritante pulsando-lhe o coração.

Então ela sorriu, ela ouviu afinal! Seus lábios rosados se abriram e aproximaram-se do rosto dele ainda mais. Ele podia sentir cada uma de suas veias pulsando como nunca todas as vezes que sentia o ar que vinha da boca dela. Colocou o violão deitado ao lado e pode senti-la aninhando-se entre seus braços, sentando-se no seu colo. Ela sorriu ainda uma vez antes de empurrá-lo um pouco para que ele caisse na grama.

Uma pena que quando ele caiu, tudo havia sumido.

Ele pode sentir uma espécie de centrufuga e abriu os olhos no mesmo instante. Deparou-se com o travesseiro que estava quase lhe sufocando. Nadou entre os lençois bagunçados enquanto sentia o suor grudando todo o pijama em seu corpo. Levantou-se atordoado. Sentou-se na cama enquanto sentia seus dedos quentes contra o chão gelado. Abaixou à cabeça e colocou as mãos ali, até finalmente entender que tudo não passou de um sonho. Engoliu à seco.

Observou com a vista embaçada o despertador digital retangular que marcava 4:10 da manhã com aqueles pontinhos alaranjados fosforecentes. Ele imaginou novamente o corpo da moça entre seus braços e quis explodir. Uma estranha sensação de satisfação lhe fez sorrir. Então ele sentiu perto da perna esquerda um aparelhinho conhecido. Seu celular iluminava uma parte do seu rosto e lá ele observava o papel de parede: Jasmin com o braço sobre seus ombros sorria para a câmera, enquanto ele parecia envergonhado demais até mesmo para isso.

Observou aquilo por um momento e decidiu. Discou o número que nunca atreverá-se a ligar e esperou. Seu coração havia disparado. A chamada caiu. Mas, ele não parou. Na oitava ou nona vez, ele viu que o toque fora interrompido.

Um "hmm?" veio do outro lados segundos depois.
- Alô, Jasmin?
- Jack?...
- É
- ... Sabe que horas são?
- Sei. É que, Jasmin... Eu queria ouvir a sua voz.

Alguns instantes de silêncio e ela sorriu do outro lado:
- É sempre bom ouvir a sua também, Jack.
- Eu te amo.

Novamente o silêncio.
- Então você pode vir para cá agora?

Depois disso o telefone foi desligado,
Mas não antes de se ouvir um barulho de pneus dançando pela rua.


•••

Dedicado à Felipe Matheus.
Obrigada pela inspiração e por acalentar meu coração com a sua voz.
Mas, especialmente obrigada por me fazer sentir como me sinto agora.

7 comentários:

  1. É impressionante como uma pessoa consegue ser dotada de um dom tao fascinante, que é traduzir o que nao tem traduçao,
    o que o coracao tenta dizer em simples pulsaçoes...
    FASCINANTE, DESLUMBRANTE, IMPRESSIONANTE, MARAVILHOSO CONTO!
    inclusive, obrigado pela dedicatória :)

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  2. Melhor de todos, parabens...

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  3. nossa, que coisa mais linda! adorei :O

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  4. Simplesmente PERFEITO maravilhoso! um Blog magnífico, com textos incríveis!! PARABÉNS

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  5. como sempre muito bom, fã do seu blog, recomendei paratodas as minhas amigas, você escreve de forma que disperta o interesse do leitor. mais uma vez parabéns!! ;**

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